A questão não é essa

porJosé Manuel Pureza

21 de setembro 2012 - 14:43
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O problema não é a taxa social única. Como se tudo o mais fosse menos mau e aceitável...

Não, não foi um problema de comunicação. Quando a política é errada, quando ela gera resistência popular forte, os responsáveis costumam atirar para canto dizendo: "É preciso explicar melhor estas medidas." Pois bem, tudo nos foi muito bem explicado. Que tínhamos de fazer enormes sacrifícios para diminuir a dívida e o défice e para darmos saúde a uma economia obesa. Que os nossos sacrifícios iam começar a diminuir em 2013 porque, entretanto, graças a eles, já começaríamos a ter uma economia regenerada, tonificada disciplinada. Tudo tão bem contado e com tanta certeza que, quando a diferença entre o discurso e a realidade ficou evidente, toda a explicação ruiu e se tornou caderno de encargos insuportável para os explicadores governamentais e troikistas. Não precisam de nos explicar melhor, obrigado. Já sabemos que, apesar dos sacrifícios dos sacrificados de sempre, o desemprego continuará a subir exponencialmente, a dívida em vez de diminuir crescerá, a nossa capacidade de a pagar será cada vez menor e os que sempre ganharam com as crises não deixarão de o fazer, e muito, também desta vez.

Não, o problema não é a taxa social única. Como se tudo o mais fosse menos mau e aceitável... Dar hipervisibilidade a uma coisa é uma estratégia hábil para pôr tudo o resto na penumbra. Ora, o "tudo o resto", no caso da política que nos governa, é o mais importante. A operação montada, em acordo entre o Governo e a troika, para a taxa social única, destacou-se por exibir sem rodeios um propósito de transferir rendimento dos trabalhadores para os empresários. Mas o que ali ficou sintetizado em estado puro foi o programa geral e a fixação ideológica do Governo e da troika com uma estratégia de embaratecimento do trabalho, tendo em vista um suposto aumento da competitividade da economia portuguesa à custa de salários baixos. Não nos iludamos, pois: a engenharia na taxa social única é apenas mais um - e mais desavergonhado - passo de uma política que não tem feito - e não quer fazer - outra coisa senão transferir rendimento dos trabalhadores para os donos de Portugal.

Não, não é uma questão de modulação da austeridade. Na aflição que a evidência da ruína da sua cartilha política lhe causa, o bloco de apoio à troika está a ensaiar uma retórica de salvação: "O povo é paciente e percebe a necessidade de austeridade; não aceita é exageros." Esperteza saloia: porque exagero inaceitável é estragar a vida de milhões de pessoas para a facilitar a umas poucas dezenas. O povo é paciente mas não é tonto e já percebeu perfeitamente que não há austeridade boa e austeridade má, porque ambas visam o mesmo: concretizar um programa ideológico de desajustamento social.

Não, não é uma questão de fórmula governativa. O apodrecimento da coligação de direita não é fruto de desaguisados pessoais nem de mal-entendidos interpartidários. Simplesmente porque o que falhou não foram os atores mas, sim, o seu programa político. Por isso, aventar cenários como manter a coligação com novos rostos no Governo ou um governo de "salvação nacional" de largo espectro dentro do bloco de apoio à troika, com participação direta dos seus partidos de suporte ou dissimulado sob uma capa de tecnocracia à la Monti, são tudo invenções que procuram apenas manter vivos os já cadáveres políticos e conter mais danos para o seu lado da política.

A questão é, como sempre foi, a da democracia. A democracia que inclui e que resolve. A democracia feita de escolhas claras e corajosas. Esse é o único caminho que importa percorrer, agora como sempre. Essa é a responsabilidade de quem não suporta mais este pântano económico, social e político em que o memorando da troika nos meteu.

Artigo publicado no jornal “Diário de Notícias” de 21 de setembro de 2012

José Manuel Pureza
Sobre o/a autor(a)

José Manuel Pureza

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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