Após duas décadas de degradação de investimento público e de redução real dos salários, opção alegremente partilhada por vários governos, esta maioria absoluta enfrenta duas forças sociais, uma antiga e uma nova. A antiga é a dos professores, que já tinha desafiado um anterior Governo absoluto do PS e só quer o fim do sequestro do tempo de serviço realizado. Mas, para o Governo, os professores são o que os controladores aéreos foram para Ronald Reagan, a profissão que deve ser destruída para que o sindicalismo aprenda uma lição de autoridade. Ficará para a história esta persistência gelada que leva mesmo um ministro como João Costa a ser o quebra-sindicalistas.
O que está em causa, portanto, não é só a humilhação de professores que ficam congelados na sua perda, nem as regras que os expulsam de cidade em cidade, nem o efeito da bolha imobiliária que obriga pessoas a dormirem no carro; é, mais do que isso, a estratégia do PS para destroçar o sindicalismo, reduzindo-o a um aparelho partidário na órbita do Governo. No entanto, existe uma outra força reivindicativa que não sofre nenhuma destas dificuldades e que percebeu qual é a sua força.
Ainda se lembram de Arnaut?
Num sábado, 6 de janeiro de 2018, juntaram-se centenas de pessoas no Convento São Francisco, em Coimbra, para assistir à apresentação do livro “Salvar o SNS”, de João Semedo e António Arnaut. Foi a última contribuição de Arnaut, a doença já o impedia de estar presente, mas quis fazer aquele apelo desesperado e juntou-se ao homem que achava que devia ser o ministro da Saúde, Semedo, para proporem uma nova Lei de Bases. Se abrir as páginas do livro, tem lá tudo: uma proposta de organização, uma saúde virada para os utentes, a dedicação exclusiva e as carreiras dos profissionais em que se basearia o SNS. O primeiro-ministro, António Costa, sentou-se na primeira fila e aplaudiu.
O Governo está agora paralisado e ou aceita subir o salário base ou não pode fazer nada
Pouco tardou e o Governo encarregou uma ex-ministra, oposta ao rumo de Arnaut-Semedo, de preparar uma Lei de Bases. A ministra em funções acabou por redigir outra versão misturando aquelas duas propostas, que foi melhorada no final, mas deixou em aberto o problema dos profissionais. Agora, explodiu essa crise dos profissionais: passados quase seis anos daquela sessão em Coimbra, um quarto dos hospitais públicos multiplicarão nas próximas semanas restrições aos serviços de especialidade, e outros virão de seguida. Depois de um ano de tormento para as populações, com o fecho de urgências, a instabilidade de equipas, demissões em série e promessas repetidas do Governo, dizem-nos os jornais que o ministro remete para o chefe do Governo o que não é capaz de fazer. A sua proposta falhou: ofereceu aumentos de salários — na realidade, a reposição das perdas reais dos últimos anos — contra a obrigação de 250 horas de trabalho extra, chegando a considerar 500 horas. Queria trocar nada por tudo.
Horas extra ou quatro meses a mais
Até agora, era assim que o Governo queria manter o SNS nos mínimos. Recrutou 5727 médicos de 2015 até agosto de 2023 (há alguns a horário de 20%, note-se) para um aumento de meio milhão de utentes e necessidades sempre crescentes e quis resolver o problema duplicando as horas extra no SNS entre 2017 e 2022. No caso dos médicos, as horas extra mais do que triplicaram entre 2015 e 2022, ano em que esse custo nas urgências terá sido de 108 milhões (o suficiente para contratar 2775 jovens médicos). Com tarefeiros e a sobrecarga dos profissionais do SNS aguentava-se o barco. Até que naufragou — como acontece noutros países, em Inglaterra, França e Alemanha mais de 40% dos médicos de família querem reformar-se nos próximos três anos.
Considerando que os médicos do SNS trabalham geralmente mais 5 horas por semana do que a restante Função Pública (ou o equivalente a mais seis semanas por ano) e as horas extraordinárias em 2022 poderão ter sido em média 316 horas por médico (ou 7,9 semanas), trabalham quase quatro meses mais do que os outros trabalhadores públicos; dos enfermeiros e técnicos se dirá o mesmo. As 250 horas do ministro nem bastariam. Por isso, perante o impasse negocial, os médicos recusam fazer mais do que o máximo previsto na lei, pelo que há serviços que param neste final do ano, pois esse tempo já foi esgotado. Os profissionais limitam-se a cumprir a lei, ainda assim fazendo 150 horas extra que não são obrigatórias.
Porque é que o PS quer destruir o SNS?
Há várias teses concorrentes para explicar o empenho do PS em recusar carreiras dignas e assim destroçar o SNS. Uma é a porta giratória, que serve a alguns: um ex-secretário de Estado da Saúde foi dirigir a Associação dos Hospitais Privados, uma presidente da Comissão Parlamentar da Saúde era paga por um grupo privado, o ministro atual era especialista num hospital público e também num privado. Outra é que o PS protege a sobreposição de médicos entre o público e o privado, o que foi decisivo para o arranque dos grupos privados, e assim satisfaria o conforto de duplos e triplos salários de alguns especialistas. Ou que quer simplesmente ampliar o negócio privado na saúde, onde se esperam ganhos elevados.
Seja como for, o Governo está agora paralisado e ou aceita subir o salário base ou não pode fazer nada; não sendo uma greve, não há requisição civil. Só este xeque ao rei pode salvar o SNS, lembrando o aviso de Arnaut e Semedo.
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 6 de outubro de 2023
