A quem serve a Entidade Reguladora da Saúde?

porBruno Maia

08 de novembro 2018 - 8:54
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Segundo a ERS, entre os 3 melhores hospitais a tratar doentes com Acidente Vascular Cerebral (AVC) estão o Hospital de Cascais e o Hospital de Vila Franca de Xira (ambos PPP...). Só que há um problema: nenhum destes hospitais trata o AVC!!

A Entidade Reguladora da Saúde (ERS) é, de acordo com todas as informações que disponho até ao momento, um organismo público. O que significa que deve responder pelas suas atividades e ações e ser escrutinada devidamente. Vamos a isso!

A semana passada a ERS publicou os resultados de um programa que criou, o SINAS, cuja função é avaliar os serviços de saúde em Portugal. Nesses resultados, esta entidade garantia que entre os 3 melhores hospitais a tratar doentes com Acidente Vascular Cerebral (AVC), estavam o Hospital de Cascais e o Hospital de Vila Franca de Xira (ambos parcerias público-privadas...). Só que há um problema: nenhum destes hospitais trata o AVC!! Não recebem doentes urgentes pela Via Verde do AVC - uma rede nacional para encaminhar doentes na fase inicial do AVC, não dispõem de internamento numa Unidade de AVC, nem têm capacidade para o tratamento mais importante nesta doença - terapêutica endovascular. Tudo o que é fundamental para tratar um AVC adequadamente. Por exemplo, os doentes com sintomas de AVC que sejam identificados por uma das várias estruturas do INEM (Instituto Nacional de Emergência médica) e que morem na área de residência do Hospital de Vila Franca de Xira, são encaminhados para o Hospital de S. José para serem tratados. E isto inclui habitantes de áreas como Samora Correia que fica a 50 Km de Lisboa. Porquê? Porque o hospital mais perto, que a ERS diz ser “o melhor” a tratar AVC... não trata AVC!

Será que estes hospitais têm de tratar AVC? Não, a questão nem é essa. O tratamento completo e atempado de um AVC pressupõe, hoje em dia, estruturas e conhecimentos técnicos bastante desenvolvidos e específicos, o que só será possível oferecer nos hospitais mais “centrais”. O papel dos hospitais mais pequenos é fundamental na identificação e referenciação dos casos emergentes a estes centros mais diferenciados.

A questão que se coloca é: por que raio uma entidade reguladora pública classifica hospitais no tratamento do AVC que não tratam AVC?

O SINAS é um programa voluntário, ou seja, são os próprios hospitais que fornecem os dados para a avaliação. No entanto, os critérios são definidos pela ERS. Mesmo admitindo que os grandes hospitais não fornecem os seus dados voluntariamente, segundo a notícia do Público, a ERS classificou com “nota máxima” estes dois hospitais (os tais que não tratam o AVC). De acordo com a ERS, o SINAS pretende “facultar o acesso a informação adequada e inteligível, promovendo a tomada de decisões mais informadas e a melhoria contínua da qualidade dos cuidados prestados” – dos utentes, entenda-se. Apetece perguntar: desculpe? Era possível desinformar mais do que isto? Que decisão informada espera a ERS que os utentes tomem? Que se tiverem um AVC, corram para Cascais ou Vila Franca, para lhes dizerem que afinal vão ser transportados para outro hospital?

Se a ERS é, como dizia no início, um organismo público, então tem que nos responder a todas e todos, o seguinte: 1. Porque gastam dinheiro público e recursos humanos num programa cujo resultado final será sempre questionável (já que o programa é voluntário)? 2. Pode um organismo regulador ser tão incompetente ao ponto de nem sequer conhecer a realidade no terreno que o próprio se propõe avaliar? 3. É apenas coincidência o facto de estes 3 hospitais, os únicos a terem “nota máxima”, serem parcerias público-privadas?

Termino, citando um excerto de uma publicação que circula nas redes sociais, assinada por uma médica que coordena uma unidade de AVC num hospital público:

Indigno-me por a ERS gastar tempo e recursos, que não serão muitos, numa atividade absolutamente inútil, longe da verdade e inconsequente e indigno-me com a jornalista que tem, a meu ver, o dever de informar os leitores de uma forma isenta, honesta e profunda. Quem leia o artigo “Só três hospitais têm nota máxima no tratamento do AVC e são todos PPP” é induzido imediatamente no raciocínio de que, se tiver um AVC, o melhor é ser tratado numa PPP, e a verdade é que não é. Se tiver os sintomas “boca ao lado, dificuldade em falar, falta de força num braço” deve ligar o 112, porque felizmente e apesar de tudo, ainda conseguimos na fase aguda, tratar bem os doentes com AVC no Serviço Nacional de Saúde, sem parcerias público-privadas. Muito obrigada.”

Bruno Maia
Sobre o/a autor(a)

Bruno Maia

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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