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Quem representa as pessoas trans e intersexo?

As pessoas trans e intersexo estão bem representadas em Portugal. E por elas próprias, como se pôde ver na audição pública que teve lugar na Assembleia da República, no passado dia 5 de maio.

À semelhança do que tem vindo a fazer sobre diversos temas, o Bloco de Esquerda promoveu uma audição pública aberta a todas as pessoas e ativistas trans e intersexo, além de outros intervenientes, profissionais e organizações que trabalham junto destes, no sentido de auscultar como vivem hoje estas populações no nosso país.

Quatro anos após a entrada em vigor da chamada Lei de identidade de género, em 2011, que permitiu a uma parte das pessoas trans alterar o seu sexo registado e fazê-lo corresponder à sua identidade de género, muito mudou no quotidiano destas pessoas em Portugal. O conceito de identidade de género pôde começar a fazer parte do jargão jurídico português – e, entretanto, até já vem explicitamente mencionado no Código Penal (como agravante em incidentes de ódio) e no Código do Trabalho (como medida anti-discriminação), assim como em vários instrumentos de políticas públicas (como os últimos planos nacionais para a igualdade, cidadania e não-discriminação, ou alguns planos municipais).

Mas o que dá mais gosto de ver e ouvir é a forma como este reconhecimento serviu a emancipação das pessoas trans no nosso país.

Até 2011, entre as pessoas trans, o discurso era claro: queríamos apenas que a resma de papel acumulado ao longo de anos e anos de processo clínico de transição (incluindo relatórios de diagnóstico, exames médicos, parecer da Ordem dos Médicos, comprovativos de cirurgias realizadas, etc.) nos servisse para ver o nosso género e nome reconhecidos nos documentos de identificação. No entanto, a única alternativa para quem concluía o seu processo clínico de transição numa cirurgia de reconstrução genital (que garantisse a esterilização), era iniciar um novo processo, agora jurídico, para ver os seus documentos conforme o seu corpo. À resma de papel juntavam-se mais pareceres, exames e testemunhos. E mais anos de vida e custos astronómicos.

Compreende-se que a publicação da atual Lei de identidade de género, que exige um único relatório de diagnóstico (uma folha de papel, somente) para garantir a alteração do sexo registado e do nome, num procedimento administrativo que não demora mais que oito dias, fosse em 2011 visto como um milagre jurídico pronto para salvar vidas. Mas quatro anos passados, a população trans está suficientemente emancipada para ser exigente. O relatório de diagnóstico exigido pela lei continua a retirar-nos o poder de decidir sobre as nossas vidas. Não é nosso o direito de dizer se somos mulheres, homens ou se o nosso género é fluído e não cabe em caixinhas. Há um psicólogo e um médico que tem de nos autorizar. Por isso, exigimos o direito à autodeterminação.

Também as pessoas intersexo, tão invisíveis hoje na lei como o eram as pessoas trans até 2011, estão mais exigentes. Nesta audição, pela primeira vez, tivemos uma pessoa intersexo, o Santiago, que co-dirige comigo a Ação Pela Identidade, a falar na primeira pessoa da ausência de reconhecimento e direitos a que estão sujeitas as pessoas com a sua condição em Portugal. As que pretendem ver o seu género e nome reconhecidos têm de ser diagnosticadas como transexuais. E a maioria enfrenta uma comunidade médica com poucos ou nenhuns escrúpulos, disposta a enganá-las e a convencê-las de que são mesmo transexuais, e que é como tal que devem ser cuidadas.

Não nos custa acreditar que esta mesma comunidade médica não precise de pensar duas vezes antes de mutilar bebés cuja genitália consideram ambígua – e, em tantos casos, comprometendo para sempre a possibilidade destas pessoas terem uma vida sexual plena, saudável, e o direito fundamental de procriar. Além da autodeterminação, exigimos também o direito à integridade física.

O Bloco de Esquerda, recuperando a iniciativa que o levou a ser o primeiro partido a levar as pessoas trans ao parlamento para falarem sobre elas próprias (em 2008 foi assim: https://www.youtube.com/watch?v=xsMi5ajvPEc), iniciou um processo de revisão da atual Lei de identidade de género, convidando quem quisesse para vir dar o seu contributo. Numa atitude que ficará na história, as pessoas trans e intersexo não mandaram recado por ninguém: mais de dezena e meia de pessoas trans ou intersexo ergueram a sua voz para dizerem quais as suas experiências e aquilo que deve ser mudado. A partir de agora, vai ser assim.

Artigo publicado em Maria Capaz em 14 de maio de 2015

Sobre o/a autor(a)

Ativista feminista, dirigente do Bloco de Esquerda, co-diretora da ONG Ação Pela Identidade - API
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