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Quem disse que não havia desígnio para Portugal?

A polémica sobre a habitação é uma farsa em que se usam duas máscaras: os que gritam que querem que se mantenha a solução liberal e o Governo que finge que vai tomar medidas valentes.

Fogo que pouco arde mas muito se vê, a polémica sobre a habitação tem chegado a píncaros em que brilham os superlativistas mais dotados: Rui Moreira fez a cidade do Porto pagar uma publicidade em jeito de panfleto, intimando o Governo a “confiscar o parque habitacional dos municípios”, Montenegro descobriu um Costa “comunista”, Cotrim garante que os automóveis vão ser requisitados e Ventura, claro, ultrapassa-os. É tudo uma farsa em que se usam duas máscaras: os que gritam que querem que se mantenha a solução liberal, que já provoca um desastre social, e o Governo que finge que vai tomar medidas valentes, na certeza de que o resultado será que nem uma única casa será objeto do tal arrendamento forçado. O facto é que uns e outros querem o mesmo, ou seja, nada, e, como é natural, por se sentirem próximos nessa estratégia, têm de gritar a plenos pulmões. A direita e o PS partilham uma visão, ou, como agora se diz enfatuadamente, um desígnio para Portugal: o nosso futuro é a economia do turismo e, portanto, paciência para a habitação.

A liberdade do proprietário é absoluta?

Até agora, a habitação em Portugal tem sido o arquétipo do sucesso liberal. A Lei Cristas, apontada pelo primeiro-ministro num debate com ela como origem do desastre, foi por ele cuidadosamente preservada: o mal, afinal, era o bem. Em vez de apoiar os proprietários na reabilitação com a condição do arrendamento, autorizou-se a vaga do Alojamento Local. Em vez de construção pública, entregou-se a habitação à finança. Este êxito paga-se com o disparar dos preços, que provocam uma divisão geracional, a segregação dos bairros, o despovoamento das cidades, a crise do emprego na saúde e na educação. O mercado é rei.

A direita e o PS partilham uma visão, ou, como agora se diz enfatuadamente, um desígnio para Portugal: o nosso futuro é a economia do turismo e, portanto, paciência para a habitação

Para proteger estas conquistas, os liberais, que têm alguma vergonha em gabar o que conseguiram com o apartheid social dos preços, encontraram agora um mote, é o risco aterrador do bolivarianismo ou qualquer outro espectro. Curiosa perspetiva, que, aliás, acusa mais de metade dos países da União Europeia (que controlam as rendas) ou os liberais do Canadá (que, na emergência, proíbem a compra de casas por residentes fora do país). Acontece ainda que pelo menos um dos fundadores do liberalismo pensou nesta questão: será que o direito do proprietário da casa é absoluto? O modo que Adam Smith escolheu para o negar foi afirmar que “os regulamentos sobre a construção podem, sem dúvida, ser considerados uma violação da liberdade natural”. Explicava ele que “o exercício da liberdade natural de alguns indivíduos, que podem pôr em causa a segurança de toda a sociedade, é, e deve ser, restrito pelas leis de todos os Governos”. E concretizou o exemplo de um custo imposto aos proprietários — estava-se no século XVIII —, “a obrigação de construir paredes de proteção para impedir a comunicação de um incêndio é uma violação da liberdade natural, exatamente do mesmo tipo que os regulamentos que proponho sobre a atividade bancária”. A sociedade tem de impor regras ao mercado, dizia o pai do liberalismo.

Mais sobre o sucesso liberal

Um estudo de Ana Drago, nos “Cadernos” do Observatório das Crises e Alternativas, inventariava há pouco os resultados deste projeto para o país, a que chamou a “internacionalização sitiada”. É um sucesso, tão incensado pelo Governo, pois conduz a um aumento das exportações. O problema é que é o turismo, desde 2019, que representará mais de metade das exportações. Não é a capacidade produtiva, é a exploração das vantagens do território e dos salários baixos para manter uma atividade centrada no “complexo turístico-imobiliário”, que faz com que o peso do turismo no PIB seja em Portugal quatro vezes o da Alemanha e maior do que o dos grandes destinos turísticos do continente. Para o futuro, isto é a ilusão do dinheiro fácil a esconder a degradação da economia portuguesa e, se virmos a lista de financiadores legais do PS, percebemos até onde vai este entrosamento. Este “complexo” é a ideia para Portugal que é partilhada por liberais e pelo Governo atual.

Resultou. A taxa de crescimento do turismo no Valor Acrescentado Bruto foi duas vezes a da média nacional e, na comparação internacional, a do imobiliário foi de 32% em Portugal e de 0,9% na Alemanha em 2015-2019. O impacto é a subida dos preços da habitação, seja pela extensão do Alojamento Local, seja pelo preço de venda (segundo o INE, em 2019, os estrangeiros compravam mais de 40% das casas acima de meio milhão). Alugar para quê? O mercado decidiu que, a haver arrendamento, tem de corresponder a esta inflação. A consequência é também a pressão para salários baixos, imigração clandestina — onde trabalhavam os 16 cidadãos asiáticos que viviam escondidos numa loja da Mouraria? — e precariedade (no turismo, o trabalho é mais jovem, mais feminino, mais precário e menos qualificado do que a média nacional).

Tapar com a peneira

A resposta do Governo tem três dimensões. Promete outra vez construção pública, só não perguntem como nem quando. Faz-se de D. Quixote contra as casas sem contrato de água e luz, tendo a certeza de que não moverá uma palha. E, sobretudo, atua para sustentar os preços altos com medidas provisórias e efeitos permanentes. Financiar rendas (aceitando uma taxa de esforço de 45% do rendimento!) e dar subsídios fiscais só tem um recado: continuem a subir os preços, o povo aguenta. Afinal, o desígnio nacional é o turismo.

Artigo publicado no jornal Expresso a 24 de fevereiro de 2023

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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