Que programa para a esquerda do século XXI?

porManuel Afonso

09 de agosto 2024 - 22:25
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Num mundo em convulsão, há muita coisa a debater. Calibrar o âmbito temático e o grau de precisão que se pretende de uma atualização programática é determinante. Quem muito abarca, pouco aperta – há que escolher temas centrais.

Inteligência artificial e “wokismo”, neofascismo e lawfare, semana de quatro dias e automatização, crise climática e política de cuidados, imperialismo e reparações históricas, sindicalismo e lutas “inorgânicas”, campismo e multipolaridade – o rol de novas (muitas delas novas-velhas) questões que se colocam à esquerda nesta terceira década do século XXI é enorme. O mundo mudou e o programa socialista deve adaptar-se. Na adaptação há riscos, claro. O receio de, no afã da inovação, se perder a força dos pilares socialistas é justo – já antes aconteceu a muita da esquerda radical. Mas o conservadorismo é a garantia do insucesso; a ideia de que o fechamento sectário é vacina justa contra derivas oportunistas paga o duro preço de abdicar de mudar o mundo. Neste terreno, o Bloco tem garantias dadas – desde a fundação até hoje, o que vemos é o reforço do perfil socialista, da inspiração marxista e da assunção do anticapitalismo.

Podemos ter segurança numa atualização programática. Mas o que é o programa?

O programa é o alicerce do partido. É o cimento que une, a base da ação e da coerência. Quando alguém integra um partido, adere, antes de mais, a um programa. Nem todos os militantes concordarão com o conjunto do programa, muitos não concordarão com alguns aspetos, mas a imensa maioria concordará com o grosso. Caso contrário, a solidez da organização afrouxa, a ação coletiva torna-se difícil, os que aderem por impulso não se mantêm. Sem um programa sólido, um partido vive ao sabor dos momentos, dos sucessos ou insucessos eleitorais, das tendências da opinião pública – quase sempre determinadas pelas classes dominantes – ou das lutas sociais – nem sempre assentes em projetos de mudança social, mesmo quando progressivas. O resultado são ziguezagues, adaptações oportunistas ou sectárias, fechamentos excessivos ou aberturas dissolventes. Sem um programa sólido, expresso, e democraticamente discutido, uma organização de esquerda pode ter sucessos momentâneos, mas não vitórias decisivas.

É comum pensar-se num programa como sendo um conjunto de medidas – de propostas – que são apresentadas em eleições: “aumento de salários”; “investimento na ferrovia”; “reconhecimento do Estado da Palestina”, etc. Medidas e propostas são parte do programa, dado que expressam as tarefas políticas da esquerda. Programas eleitorais, necessariamente centrados em propostas, são uma expressão do programa do partido, derivam dele e não o devem contradizer. Mas um programa eleitoral é uma coisa, o programa de um partido é outra: é a visão de mundo da organização e as tarefas que dela se desprendem. Ele permanece no tempo – não para sempre, mas além dos ciclos eleitorais. Se a política quotidiana e a tática eleitoral devem levar em conta o grau de compreensão que as massas populares têm das propostas socialistas, o programa baseia-se na realidade objetiva. As tarefas que dele se desprendem assentam em necessidades concretas, não em preferências subjetivas – nacionalizações, rutura com blocos militares e políticas públicas antirracistas quase sempre irão contra o senso comum até da classe trabalhadora, mas não podem faltar num programa socialista, pois derivam da dura realidade. A política é mediada, o programa não.

Portanto, uma análise da realidade concreta e as tarefas objetivas que dela se desprendem, isto é o programa. Como síntese, a visão de mundo é o anticapitalismo – a crítica a este sistema de dominação, que impede o bem-estar da maioria e periga a civilização humana; a tarefa que daí se desprende é o (eco)socialismo – a emergência de um Estado nas mãos das maiorias trabalhadoras, que nelas coloque a gestão democrática da vida pública, da produção e reprodução social ao serviço da paz, liberdade, bem-estar e preservação ecológica. A democracia de quem trabalha contra a ditadura do mercado.

Porém, esta síntese genérica não resolve o problema. Ela deve desmultiplicar-se em diversos problemas a serem analisados e compreendidos e, sobretudo, nas tarefas que daí se depreendem. Alguns exemplos: se identificamos o Imperialismo com os EUA e os seus aliados, o nosso posicionamento nos conflitos internacionais deve alinhar-se sempre com os adversários do “Ocidente”; se, pelo contrário, considerarmos o Imperialismo como um sistema em que potências concorrem entre si, criando tensões bélicas crescentes, opor-nos-emos a todas as potências imperiais. Se virmos a crise climática como sendo fruto de uma tecnologia específica – os combustíveis fósseis – centraremos a resposta na substituição das fontes de energia fóssil por outras renováveis; se virmos o colapso climático como parte da fuga em frente do capitalismo em crise, proporemos medidas que tendam a substituir a ditadura do mercado pela planificação democrática da produção. Se identificarmos as diversas opressões com sistemas paralelos de dominação – o cis-heteropatriarcado, o racismo, o capacitismo, etc. – apostos à exploração económica, focar-nos-emos em lutas paralelas de diversas identidades; caso compreendamos essas opressões como expressões contingentes de um só sistema de dominação, o mesmo que é responsável pela exploração económica, veremos na classe trabalhadora, na sua múltipla diversidade, o sujeito social da emancipação em todas as esferas da vida.

À primeira vista, estes exemplos podem parecer abstrações longínquas, separadas das questões políticas do quotidiano. Mas questões como a política de mobilidade, o posicionamento face a conflitos na Ucrânia ou na Venezuela, o papel das mulheres trans no movimento feminista ou o apoio a propostas como a criminalização do racismo serão sólidas se baseadas num programa coerente. Caso contrário, o risco de responder a cada um destes desafios com base nas pressões do momento é grande. E, dessa forma, exacerbam-se contradições que, aos poucos, colocam entraves à ação coletiva. A paralisia é o preço da indefinição.

Num mundo em convulsão, há muita coisa a debater. Calibrar o âmbito temático e o grau de precisão que se pretende de uma atualização programática é determinante. Quem muito abarca, pouco aperta – há que escolher temas centrais. Sem dúvida os que respondem às tensões bélicas e geopolíticas – e ao lugar do nosso país nelas –, à crise climática, à ascensão do neofascismo e às características da classe trabalhadora em Portugal hoje são centrais. Elas interligam-se entre si e com temas como o antirracismo, o feminismo e a emancipação LGBTQIA+, a transição climática, etc.

Outro desafio é perceber até onde queremos ir. A falta de definição programática dissolve os laços da militância, o excesso arrisca-se a excluir e dividir. Algum grau de ambiguidade pode ser saudável, mas não em demasia. Como assinalou Marx, “Cada passo do movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas.” Não se trata de desvalorizar o programa, mas de entender que ele está ao serviço do avanço do “movimento real”. A esquerda não tem necessidade de inventar assuntos para se dividir, mas tão-pouco se pode dar ao luxo de não ter uma visão própria dos grandes assuntos do nosso tempo – caso contrário, terá sempre a visão de outrem.

Uma coisa é certa: a democracia é o método da elaboração, o Socialismo é o sentido do programa. Porque há coisas que não mudam.

Manuel Afonso
Sobre o/a autor(a)

Manuel Afonso

Assistente editorial e ativista laboral e climático
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