Que forças são essas, amiga? (Dedicado ao Sérgio e à Capicua)

porGabriel Coelho

19 de setembro 2025 - 18:13
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Que forças são essas, amiga, que ao longo da História te têm empurrado para o silêncio, para a cozinha, para a sombra? São forças muito concretas, económicas, religiosas, políticas, que encontraram na tua opressão uma forma de manter privilégios, sustentar impérios e perpetuar desigualdades.

Que forças são essas, amiga, que ao longo da História te têm empurrado para o silêncio, para a cozinha, para a sombra? Que forças são essas que dizem que o teu trabalho vale menos, que a tua voz é mais fraca, que o teu corpo não te pertence? Não são mistérios insondáveis nem “leis naturais”: são forças muito concretas, económicas, religiosas, políticas, que encontraram na tua opressão uma forma de manter privilégios, sustentar impérios e perpetuar desigualdades.

No mundo do trabalho, a diferença continua a medir-se em números frios. Em Portugal, em 2023, a tua remuneração base foi, em média, 12,5 % inferior à dos homens; considerando o salário médio (com subsídios e prémios), a diferença permaneceu significativa. Mesmo quando controladas variáveis como setor, habilitações ou antiguidade, o fosso ajustado manteve-se em 11,1 %. Estes valores são cicatrizes que desmentem qualquer discurso de igualdade; são chagas abertas na democracia, escancaradas para todos verem.

No entanto, estas estatísticas não passam de números. Por factuais que se apresentem, a verdade é que apenas arranham a superfície. Continuas a ser maioria nos empregos precários e mal pagos: limpezas, call centers, cuidados informais, tarefas que sustentam a vida coletiva, mas que se escondem atrás de um manto de invisibilidade. E, no lar, quase inevitavelmente, recai sobre ti uma segunda jornada, tantas vezes tida como natural: o trabalho doméstico e de cuidado. Tarefas que continuam maioritariamente nas tuas mãos, que permanecem não remuneradas, mas essenciais ao funcionamento do capitalismo.

Nada é mais revelador do medo, do terror do poder patriarcal do que o esforço persistente em domesticar a autonomia feminina

E se o trabalho te é roubado, também o é o teu corpo. Da criminalização da interrupção voluntária da gravidez às tentativas de retrocesso que vemos em Portugal e um pouco por todo o mundo, o corpo feminino continua a ser visto como território a controlar, um campo de batalha ideológica. A tua sexualidade é policiada, seja pela moral religiosa que exige pureza, seja pelo discurso dominante que te transforma em culpada quando és vítima de violência sexual (puseste-te a jeito). Nada é mais revelador do medo, do terror do poder patriarcal do que o esforço persistente em domesticar a autonomia feminina.

A violência, por sua vez, é a face mais visível (e ao mesmo tempo mais banalizada) desta estrutura. Apesar dos números variarem por ano, os feminicídios e a violência doméstica continuam a ser uma mancha sangrenta na nossa sociedade. Os números anuais chocam: todos os anos há dezenas de mulheres e crianças assassinadas em contexto de violência doméstica. São vidas que não se apagam em estatísticas. São gritos por justiça. São vidas silenciadas por um sistema que produz o pior tipo de submissão: à violência, ao medo, à morte.

E não esqueçamos o papel da religião. Nas tradições abraâmicas, nasces como uma costela, és condenada como tentação, és exaltada apenas quando obediente e “pura”. Ao longo de séculos, essa narrativa legitimou exclusões: da escola, da política, da própria ideia de cidadania. Foi assim que o patriarcado encontrou na religião uma das suas trincheiras mais sólidas, visível tanto nas teocracias que ainda hoje te aprisionam, como no Ocidente, onde púlpitos e discursos continuam a pregar que deves “saber o teu lugar”.

Que forças são essas, então? São as forças do patriarcado, que se entrelaçam com as forças do capital. São as forças da religião quando serve para justificar divinamente (“Tens que respeitar o meu deus”) todas as desigualdades. E são, sobretudo, as forças políticas que hoje tentam fazer recuar conquistas históricas alcançadas à custa de sacrifícios, prisões, torturas e morte de quem lutou por elas. Vemo-las na extrema-direita portuguesa, com o Chega a atacar a lei da interrupção voluntária da gravidez, a relativizar a violência doméstica ou a reduzir-te ao papel de mãe e cuidadora. Vemo-las aqui ao lado em Espanha, no Vox, que tenta eliminar leis de proteção contra a violência de género. Vemo-las nos Estados Unidos, com o Partido Republicano a conseguir revogar o Roe v. Wade, retirando a milhões de mulheres o direito fundamental a decidir sobre o próprio corpo. Vemo-las na Hungria de Orbán e na Polónia do PiS, onde a ideologia ultraconservadora se alia à Igreja para restringir direitos sexuais e reprodutivos. Não são forças invisíveis: têm rosto, têm partidos, têm púlpitos, têm interesses bem claros: preservar o poder de alguns à custa da tua liberdade.

Mas há uma outra força, amiga. Uma força que nasce da resistência, que se faz nas manifestações feministas, nas ruas, no dia-a-dia das vozes que já não aceitam calar-se. É a força que rompe com séculos de silêncio, que expõe o que era considerado natural ou sagrado, que exige igualdade não como concessão, mas como condição de humanidade. E é a essa força que hoje temos de nos agarrar, porque enquanto houver uma mulher oprimida, não haverá humanidade livre.

Afinal, que força é essa, amiga? É a tua, é a nossa… e não vai haver sistema algum que a consiga travar.

Gabriel Coelho
Sobre o/a autor(a)

Gabriel Coelho

Professor de Matemática e Ciências Naturais, co-criador do podcast Quarteto dos Três Ateus Miguel e Gabriel
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