Diferentes observadores colocam hoje de novo a pergunta clássica “Que Fazer?”, formulada pela primeira vez num célebre panfleto de 1901 a propósito da social-democracia russa. Nessa altura tratava-se de justificar a construção de um tipo de partido inspirado na social-democracia alemã (SPD) para enfrentar os rigores da repressão czarista e, ao mesmo tempo, dar corpo a um projeto de unificação nacional e de organização do proletariado russo na luta pelo socialismo. Este, em breve, daria mostras de atividade revolucionária (1905). Mais de um século passado, recheado de acontecimentos contraditórios e de muitas derrotas, de grandes mudanças no próprio capitalismo e na estratificação das classes sociais, de crise da esquerda e da própria ideia de revolução e de socialismo, aquela pergunta volta a ter atualidade.
Já em 2010, no Fórum Social Mundial, David Harvey afirmava que “a questão de Lenine exige uma resposta” (Que Fazer?) e, uma década mais tarde, o mesmo autor retoma o tema tendo em conta as profundas transformações do capitalismo contemporâneo, em particular da própria classe trabalhadora. Concentrando-se na evolução do panorama económico dos Estados Unidos e da Inglaterra desde os anos 70, Harvey constata o óbvio, é tentador afirmar que a classe trabalhadora “desapareceu”, mas se pararmos para pensar com mais cuidado concluímos que ela simplesmente mudou de configuração. Uma parte transferiu-se para países como a China ou o México onde a remuneração do trabalho é mais baixa (offshoring), a restante não está fabricando apenas as mesmas coisas, nem está envolvida nas mesmas atividades de antigamente.
Uma parte da “nova classe trabalhadora” deve ser encontrada nas vastas cadeias de fast food, na logística ou nos terminais dos aeroportos, setores de atividade que ganharam uma importância estratégica enorme. Desde logo porque esses trabalhadores podem paralisar a atividade económica de um país quando mobilizados para greves e outras ações de resistência prolongada. Por outro lado, estas atividades estão associadas a mudanças nos estilos e nas modalidades de vida contemporâneos que não serão revertidos. A entrada das mulheres no mercado de trabalho retirou a produção de alimentos dos lares da população trabalhadora e transferiu-a para o mercado em muitas partes do mundo, da mesma forma que o turismo e outros modelos de vida “modernos” instalaram-se decisivamente.
Por outro lado, ainda, muitos destes trabalhadores, mesmo sem ocuparem postos de trabalho em fábricas ou outros locais convencionais, são essenciais para a criação de valor e para a realização da mais-valia, fazem parte de uma espécie de trabalhador coletivo que mantém o capitalismo em funcionamento. A luta anticapitalista deve partir da abordagem do sistema como uma totalidade, travada na esfera da produção, da realização no mercado e noutras atividades no domínio da circulação e na esfera da reprodução social. O/a trabalhador de uma cadeia de fast-food, um(a) caixa de supermercado, um(a) professor(a) ou um(a) trabalhador(a) da banca integram essa mesma massa de assalariados cuja ação conjugada será decisiva para qualquer projeto de derrube do capitalismo.
Para além de tudo isto, a “renovação” da classe trabalhadora envolve também uma alteração mais profunda da sua composição em termos de género (mulheres), de raça (minorias racializadas) e étnica (africanos, hispânicos, imigrantes da Europa Oriental e de outros lugares) com consequências táticas importantes para a luta anticapitalista. Trata-se de uma classe trabalhadora dominada, em certas áreas, por mulheres, por afro-americanos e outros grupos étnico-raciais marginalizados e por imigrantes. As identidades destes grupos sociais da população trabalhadora permanecem vivas (daí a emergência de novos movimentos sociais) mesmo quando eles se integram no quadro das lutas contra o capital, mas um forte movimento dos trabalhadores é condição indispensável para as superar em algo mais vasto e que as transcende.
As implicações de todos estes fenómenos para a resposta à questão “Que Fazer?” são enormes. Assim como Lenine procurou formular uma pergunta e respostas adaptadas à resolução dos problemas da sua época, hoje precisamos de evitar as pressões para a fragmentação que resultam da diversidade da composição da classe trabalhadora nos mais diversos domínios, criando um poderoso instrumento de unificação que é o partido de massas dos trabalhadores. A grande questão é, como acomodar na mesma organização autonomia estratégica e implantação social indispensáveis para um processo de derrube do capitalismo e de tomada do poder pelo proletariado, com a descentralização e a variedade de pontos de vista que hoje predominam no plano social. Só um programa anticapitalista consistente e abrangente, que combine lutas com a educação revolucionária , isto é, que as articule com a natureza capitalista da sociedade e a necessidade de transformação social, o pode assegurar.
Artigo publicado em Raio de Luz a 29 de novembro de 2024