Que criminalidade é esta?

porPedro Amaral

31 de agosto 2024 - 21:24
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Caminhamos para estigmatizações que funcionam mais como profecias autorrealizadas do que análises racionais.

No passado sábado, dia três de agosto, passaram duas peças no Telejornal da RTP Açores sobre as taxas de criminalidade nos concelhos açorianos e a insegurança sentida em Ponta Delgada, como abertura.

É-nos, desde logo, apresentado que, segundo o INE, os Açores têm a maior taxa de criminalidade, com 40%. Aquela segunda circunferência em índice é importante: não estamos perante uma percentagem, mas uma permilagem. Ou seja, o que aquele indicador afirma é que por cada mil habitantes num dado espaço, ocorreram nele 40 crimes.

Nos Açores, em 2023, ocorreram, em absoluto, 9788 crimes reportados pelas autoridades. Isto é importantíssimo ficar claro, porque na reportagem, quer no visual, quer na narração se afirma ser percentagem, o que seriam valores dez vezes superiores. Dez vezes.

Percebemos que esta reportagem, lamentavelmente, tem realmente um problema na literacia matemática, uma vez que também é afirmado que o valor da taxa de criminalidade em Portugal, de 35,0%, é uma média, o que não faz qualquer sentido. Só poderia ser média, caso Continente, Açores e Madeira, tivesse o mesmo número de pessoas. Mesmo ignorando isso, se se tentasse fazer uma "média" o valor seria 33,9%. Já agora, o que estava escrito no gráfico era "Portugal continental" em vez de "Portugal" ou "Nacional".

É afirmado que existe um aumento considerável dos casos de roubo na rua (houve mais 36), não obstante, não é dito que a taxa desses crimes é menor do que a do Continente ou a da Madeira. Já agora, 60% deles foram em Ponta Delgada.

Porque isto importa? Quem ouviu a reportagem, julga que os Açores se tornaram um local inseguro, o que não corresponde à realidade. Se virmos os dados detalhadamente, apercebemo-nos que o número dos casos total aumentou ligeiramente em relação a 2022 (0,5%), menos que a nível nacional (8,2%), e menos do que em 2021. Percebemos que só em 4 ilhas houve um aumento dos casos (em São Miguel diminui ligeiramente) - Santa Maria, por exemplo, tem, pelo menos desde 1993, o seu menor número absoluto. Mais de metade dos casos foram em Ponta Delgada e Ribeira Grande.

Aquilo que parece estar a acontecer é uma diversificação das categorias de crime.

Há crime e devemos preocuparmo-nos em baixá-lo, particularmente preocupante a violência física, como a doméstica, mas não podemos ser sensacionalistas e criar um clima de insegurança onde ele não existe. Há uns meses o AO publicou uma notícia com o título "Dados de criminalidade são preocupantes" onde se lê que a pessoa citada que manifestou essa preocupação esclarece que ainda não se sabe se esse é um aumento real, ou casos a serem reportados e que anteriormente não o tinham sido. Foi uma opção jornalística a escolha do título que mimetiza as estratégias da CMTV.

Na notícia seguinte temos a reportagem sobre a insegurança em Ponta Delgada a dedicar 22 segundos de imagens a sem-abrigo e pedinte, sendo que não encontrei estudos que provassem uma prevalência do crime nessas comunidades. Como se não bastasse, o autarca fala em que por vezes se descriminaliza sem pensar nas consequências, o que me parece uma referência direta à toxicodependência. Caminhamos para estigmatizações que funcionam mais como profecias autorrealizadas do que análises racionais.

Nenhum dos jornalistas terá agido de má-fé, incorporaram este discurso, que só gera desconfiança e um apoio aos autoritarismos, daquele que é o cenário nacional (e mundial) da comunicação social.

Pedro Amaral
Sobre o/a autor(a)

Pedro Amaral

Natural da ilha de Santa Maria, estuda Filosofia no Porto. Membro da Comissão Coordenadora Regional dos Açores do Bloco de Esquerda.
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