Quando a morte compete entre si

porMiguel Guedes

28 de junho 2023 - 16:03
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À confirmação da morte dos cinco ocupantes do Titan no Atlântico Norte, contrapõe-se o desaparecimento recente de mais de 500 migrantes no mar Mediterrâneo que, neste último caso, se soma às 21 mil mortes e desaparecimentos desde 2014, adensando vários crimes de Estado.

O debate sobre a diferente valorização da morte consoante a grandeza dos números é imortal. Um debate aceso, armado numa rotunda, cíclico. E sim, a ordem de grandeza existe e considera uma percepção de valor. À confirmação da morte dos cinco ocupantes do Titan no Atlântico Norte, contrapõe-se o desaparecimento recente de mais de 500 migrantes no mar Mediterrâneo que, neste último caso, se soma às 21 mil mortes e desaparecimentos desde 2014, adensando vários crimes de Estado em concorrência e simultaneidade. A “implosão catastrófica” do submersível que procurava chegar aos destroços do Titanic encerra um desfecho fatal milionário que convocou milhares de indignações e comparações abusivas entre a dimensão e importância da morte. Não há parentes pobres na morte, mesmo quando a visibilidade e interesse da opinião pública se dirigem mais para o episódio e menos para a História.

O campo de destroços do Titan foi encontrado a menos de 500 metros do Titanic, navio que se afundou a cerca de 4000 metros de profundidade, em 1912, no preâmbulo da primeira grande Guerra. A complexidade das operações de busca não desmente o lado habitual e rotineiro de quem faz da moralidade um critério de salvação. Esta ideia de que o investimento na salvação de cinco pessoas é um despesismo inqualificável atrai um motor ideológico de imoralidade que, no fim da linha do horizonte, acaba por desqualificar aqueles que pretendem a salvação de centenas ou milhares. A utilização de veículos subaquáticos operados remotamente para inspeccionar o fundo do mar, denominados ROV, convocaram três países e um dispendioso conjunto de meios, enquanto que aos migrantes do Mediterrâneo entregam-se simples buscas à superfície. Esta esquadria de discrepância não pode servir para fundamentar senão o desinteresse pelas causas e pelas motivações. Uma história singular é sempre muito mais comovente do que uma história de centenas, vivida vezes sem conta. Netflix, next.

Aos migrantes sobreviventes do Mediterrâneo, a Grécia impõe a ditadura do silêncio. Ninguém fala, ninguém conta, ninguém permite saber o que verdadeiramente aconteceu numa das maiores tragédias dos últimos tempos, onde cinco centenas de pessoas perderam a vida num navio naufragado que transportava cerca de 100 crianças a bordo. Apesar dos protestos da comunidade civil, a guarda costeira grega não se desvia um milímetro de eventual grau de culpa. Como escreveu Warsan Shire, poeta queniana, “ninguém põe as suas crianças num barco, a não ser que a água seja mais segura do que a terra”. A dimensão da morte não se pode ligar aos números, mas sim às causas que lhe dão vida.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 23 de junho de 2023

Miguel Guedes
Sobre o/a autor(a)

Miguel Guedes

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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