Está aqui

Qatar e o horror do que jaz sob o espetáculo

O PR, o Presidente da AR e o Primeiro-Ministro já anunciaram, também, que pretendem ir ao Qatar para estarem presentes nos jogos do Mundial em que a seleção portuguesa participa. Sem uma palavra crítica ou de condenação das violações de direitos humanos na organização do Mundial.

Uma das maravilhas do teatro é poder justapor, num mesmo plano, múltiplos tempos e espaços. Um exemplo dado por um amigo é o de uma encenação da peça “Um chapéu de palha de Itália”. Os dramas do dandy Fadinard, as cenas do seu casamento chique e dos seus encontros em busca de um chapéu eram representados tal como no texto original, no plano principal do palco. Mas aquela montagem adicionou um segundo plano: o dos trabalhadores que tornavam possíveis as cenas, embora estivessem ausentes da peça tal como fora escrita. Assim, era como se duas peças se apresentassem ao mesmo tempo. Enquanto se assistia ao desenrolar da ação principal, havia sempre uma outra cena, representada em paralelo, na qual era possível ver os “bastidores” das classes que tinham desparecido da narrativa oficial, subitamente tornadas visíveis.

O Campeonato do Mundo de Futebol começa no próximo dia 20 de novembro, no Qatar. Se fossemos capazes de utilizar o mesmo dispositivo, teríamos na cena principal a espetacular festa de abertura, a opulência dos estádios com ar condicionado num dos países mais quentes do mundo, a felicidade dos acionistas das empresas estrangeiras que ganharam milhões com a construção das mega-infraestruturas para o evento, a comunicação profissional em que “petromonarquia” do Qatar gastou milhões e milhões, os jogos em que as equipas disputarão a classificação e o título, os hotéis futuristas em que estará alojada a elite de governantes em representação oficial. Numa cena paralela, num plano mais próximo, teríamos o outro lado do Campeonato e do país em que ele ocorre: os cerca de dois milhões de trabalhadores estrangeiros (asiáticos e africanos) recrutados para fazer os sete estádios e a rede de metro, a quem os angariadores confiscaram documentação e passaportes e mantiveram numa total dependência. O jovem nepalês que fará diálise o resto da vida pelas condições extremas em que trabalhou na construção dos estádios de Doha. Os seus colegas a desmaiar e a colapsar por serem obrigados a trabalhar com temperaturas de 44 graus. Os migrantes pobres a desidratar num país em que uma garrafa de água custa tanto quanto uma coca-cola. Os mais de seis mil trabalhadores mortos neste processo, muitos dos quais com relatórios de “causas naturais”. A censura, a perseguição e a condenação de quem ousou fazer denúncias ou opor-se ao regime autocrático de Hamad Al Thani. As mulheres que continuam a ser violentamente discriminadas e as minorias sexuais cujos comportamentos afetivos - ou o mero apoio aos seus direitos - são considerados crime e punidos com prisão. Os tribunais que podem declarar a pena de morte.

O prólogo da peça, ou o seu primeiro ato, poderia acontecer antes de todas estas ações, em 2010. Talvez um bom começo fosse a reunião ocorrida a 23 de novembro desse ano, no Palácio do Eliseu, entre Nicolas Sarkozy (à época presidente francês), Hamad al-Thani (então príncipe herdeiro e atual emir do Qatar), Michel Platini (que liderava a UEFA e era vice-presidente da FIFA), o chefe do governo do Qatar.

Na sequência desse produtivo pequeno-almoço, Platini haveria de mudar de posição sobre a localização do campeonato, defendendo o Qatar em vez dos EUA (e conseguindo constituir uma maioria para essa decisão), o Paris Saint-Germain receberia 1.800 milhões de euros à margem das regras e passaria a ser propriedade do Qatar em 2011, o filho de Platini seria contratado por uma empresa de equipamentos desportivos do fundo soberano do Qatar. Uma abertura promissora, não?

O drama é que tudo isto se passou na realidade nos últimos anos e continua a desenrolar-se diante dos nossos olhos. Apesar das denúncias contundentes da Amnistia Internacional sobre a violação dos direitos humanos. Apesar das acusações contra Platini por corrupção na atribuição do Mundial ao Qatar. Apesar do despudorado “greenwashing” feito pela FIFA sobre um país que é dos maiores emissores de dióxido de carbono per capita e sobre um evento em que a climatização dos estádios e das outras infraestruturas vai agravar o desastre ambiental. Apesar de a Federação Portuguesa de Futebol não ter dito nada sobre esta desgraça.

O Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro já anunciaram, também, que pretendem ir ao Qatar para estarem presentes nos jogos do Mundial em que a seleção portuguesa participa.

Sem uma palavra crítica ou de condenação das violações de direitos humanos na organização do Mundial. Como se fosse possível fingir que não sabemos e que não vemos. Como se, neste contexto, as autoridades portuguesas fazerem-se representar em tal evento não nos integrasse, como país, na cena paralela de horrores contra a humanidade e de ofensas à liberdade. É sobre todo esse sedimento que a bola rolará.

Artigo publicado em expresso.pt a 16 de novembro de 2022

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
(...)