Prosápia presidencial

porFrancisco Louçã

09 de dezembro 2024 - 18:38
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O que nenhum dos candidatos até agora fez é o mais óbvio: dizer simplesmente “sou candidato” e, já agora, em prol de quê. Só que para isso têm de ponderar, decidir e colocar-se de dentro, o que é muito inconveniente, enquanto o mundo, espantosamente distraído, pensa noutras coisas.

A mais de um ano das eleições presidenciais, a excitação candidatal está a ofuscar as autárquicas e a ocupar o espaço público. A bem dizer, a estratégia de vários candidatos (e nenhuma candidata até agora) é o que promove essa precipitação. E é o resultado de alguma prosápia, o que determina a forma dos pré-anúncios, pois de conteúdo não há nada: entre a dúzia de candidatos a candidatos, nenhum se ocupou até agora de explicar o que pretende para o país. Todo o discurso é sobre o próprio protocandidato e as superiores razões que o levam a submeter o seu nome aos ansiosos cidadãos. Essas razões são enunciadas de quatro modos distintos.

Em primeiro lugar, há os candidatos que vão ponderar. Os mais sofisticados até explicam que ponderam agora se virão a ponderar no primeiro trimestre de 2025. Se tal precisão de calendário sugere aos leitores que a decisão está tomada e até que a podem adivinhar, não são os únicos. Nesse jogo destacam-se para já Marques Mendes e António José Seguro. Ambos pedem que lhes perguntem amiúde – no caso de Mendes, até sabemos o dia e hora da pergunta – se já ponderaram ou se confirmam que vão ponderar, o que nos vão revelando como se connosco partilhassem um segredo solene: sim, vão ponderar. E devemos ficar aliviados por essa prova de consideração para com o povo.

Há uma segunda categoria, que são os que não confirmam nem desmentem, desde que não nos esqueçamos deles. São três: Augusto Santos Silva não se põe de fora nem dentro, António Vitorino diz que não diz que não nem que sim e Mário Centeno está focado no seu trabalho e admite focar-se noutra missão, se assim o vento o empurrar.

O terceiro grupo de candidatos recebeu um chamamento da Pátria. Para Durão Barroso e Paulo Portas, o primeiro sempre audível sobre o assunto e o segundo mais recatado, o chamamento não está a ser suficientemente forte, como se nota. Mas o chamamento é audível para Santana Lopes, que até acha que ganharia, e para o almirante Gouveia e Melo, que foi chamado pelo prime-time do tempo das vacinas e que continuou chamado pelo seu próprio dever de ser Presidente. É desagradável que a Pátria tenha decibéis diferentes para candidatos tão apessoados, mas é a vida, eles cumprirão.

E depois há o quarto tipo de candidato, o que foi chamado por Deus. É discutível se Deus está acima ou abaixo da Pátria, coisas de republicanos, mas quem ouve esse apelo só pode reconhecer que é uma razão superior. É Ventura o escolhido, como tem feito questão de lembrar aos incréus. Não se sabe se essa conversa divina foi feita de uma só vez, delegando no homem o dever de ser candidato a tudo, designando-o assim para uma espécie de assinatura candidatária, ou se se vai renovando em sucessivas instruções por cada eleição. O que é certo é que Ventura, que já apoiou o almirante, percebeu que assim não seria candidato, uma chatice – talvez tenha sido Deus que lhe chamou a atenção para o erro e a incongruência e o pôs de novo no bom caminho.

O que nenhum deles até agora fez é o mais óbvio: dizer simplesmente “sou candidato” e, já agora, em prol de quê. Só que para isso têm de ponderar, decidir e colocar-se de dentro, o que é muito inconveniente, enquanto o mundo, espantosamente distraído, pensa noutras coisas.

Este texto é parte da intervenção de Francisco Louçã no podcast “Um pouco mais de azul”, onde também participam o jornalista Fernando Alves e a poeta Rita Taborda Duarte. O podcast completo aqui

Francisco Louçã
Sobre o/a autor(a)

Francisco Louçã

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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