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Proíbam a libra

O capitalismo puro não quer só privatizar os bens públicos, quer dirigir os sonhos individuais. Zuckerberg é o que está mais próximo da distopia de criar um mercado total.

O poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente — lembra-se deste dito, que vive entre o ingénuo e o sensato? Pois Zuckerberg é um exemplo quimicamente puro desta ambição desmedida de poder e, pior, da capacidade de multiplicar o patamar de força social que já alcançou: o Facebook (FB), cujo universo absorve um terço da população mundial, quer explorar todos os modos de comunicação, combinando divertimento, comunicação, trabalho, consumo. Quer ser tudo.

O modelo chinês

Talvez o passo imediato mais desafiante nessa direção totalizante seja o anúncio da criação de uma moeda para transações a partir da sua rede, a libra. O FB responde deste modo a uma iniciativa da Tencent, um dos gigantes chineses da internet, que lançou em 2011 o WeChat Pay, que hoje alcança mais de 900 milhões de utilizadores regulares, oferecendo-lhes comunicação por textos, áudio e vídeo, em modo individual ou em grupos até 500 pessoas. Mais de cem milhões desses utilizadores compram produtos financeiros da própria rede, como seguros e obrigações, mas também títulos de fundos de mercados monetários ou outros, o que nos primeiros nove meses do ano passado gerou uma receita de 74 mil milhões de dólares. Como vários analistas têm apontado, uma empresa deste calibre passa a conhecer não só as aplicações financeiras como os hábitos de consumo e até as opiniões dos utilizadores, o que o Estado chinês, tendo poder sobre esta empresa, deseja e agradece. É Big Brother, e sabemos quem ele é.

No caso do FB, trata-se de um poder equivalente mas nas mãos de uma empresa. Dir-se-á que não há tanto risco de uma utilização repressiva, mas há o imenso poder do mercado, que passa a ter um significado inimaginável antes da era digital. A empresa passa a fazer publicidade dirigida segundo o nosso perfil, pode acompanhar a nossa vida, saber as nossas escolhas, as palavras que usamos, os amigos que temos, os riscos financeiros que toleramos e pode ter mesmo a ambição de moldar os nossos desejos. Ou pode vender essa informação para fins políticos, como se viu com a Cambridge Analytica.

Como alguém escrevia há anos, o capitalismo puro não quer só privatizar os bens públicos, quer dirigir os sonhos individuais. Zuckerberg é o que vimos nas nossas vidas mais próximo desta distopia de criar um mercado total. É o paraíso da finança: os estrategos do Facebook imaginam aqui um modo de consumo obsessivo e gerador de uma patologia de dependências mercantilizáveis. O FB e os seus outros modos de comunicar querem ser a bolha onde todos respiramos.

Um banco universal?

Esta moeda significa também transformar o Facebook numa potência financeira, por ora facilitando transações, mas deste modo começando a gerir dívidas. Assim, ao criar uma moeda com esta dimensão universal, como nenhuma outra, talvez exceto o dólar, o FB dá um pequeno passo para vir a ser um para-Estado, num formato que nunca se conheceu na história mundial. Arroga-se o poder de tutelar as condições de acesso ao consumo, de compras e vendas, e de controlar uma parte da circulação monetária, gerando crédito. Fá-lo excluindo-se das obrigações a que está submetida a regulação bancária e das normas de controlo público a que obedece a emissão monetária por Estados soberanos. Neste caso, não é um finança-sombra, como a que nos arrastou para a grande crise financeira de há dez anos, é antes uma ‘moeda-luz’, cujo poder é precisamente ocultado pela visibilidade absoluta. Assim, ao contrário das criptomoedas, que se escondem em recantos da internet para os curiosos, os evasores fiscais e os traficantes, mobilizando a especulação de curto prazo, a libra seria uma potência para substituir as moedas nacionais em que se baseou o capitalismo que conhecemos. A primeira vítima deste impulso é a própria realidade da soberania dos Estados ou das zonas monetárias, como o euro.

Por isso, não creio que, no braço de ferro dos factos consumados, que Zuckerberg está a dirigir do alto do seu Olimpo, haja outra resposta que não seja proibir a libra. Ela é grande demais, desregulada demais, perigosa demais. Quando e se se instalar, e será sem autorização de qualquer entidade ou no meio da cacofonia de vários reguladores impotentes, terá começado a corrida para o poder da moeda privada. Seria um regresso ao feudalismo, só que o feudo será o planeta.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 6 de julho de 2019

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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