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A procissão ainda vai no adro

A estranheza manifesta-se. Agora que todos já trocaram os argumentos públicos e privados, bem que se acabava com esta exaltação amarela. Mas não. É a cor do dinheiro e a procissão ainda vai no adro.

E quando Assunção Cristas e a Conferência Episcopal Portuguesa se juntam à manif, talvez por obra e graça do Espírito Santo se contassem 40 000 pessoas num espaço onde não podiam caber fisicamente metade dos milhares. A organização atira com o número e alguma comunicação social transmite, sem cuidar de olhar para o óbvio. A instrumentalização das pessoas (dos pais, neste caso) é aterradoramente normal nos movimentos ideológicos ou de fé, mas é inaceitável quando "vão a eles as criancinhas". E alguns jornalistas. O presidente da República pode ter feito saber que abriu um sorriso amarelo. Mas o que faz encerrar qualquer sorriso amarelo é ouvir o coro de "Aqui não há misturas, é tudo boa gente". Foi mesmo ensaiado ou só espontaneidade da primeira manifestação da vida?

Não estão em causa os contratos de associação para locais onde não há ensino com cobertura pública, garantindo o acesso constitucional e universal à educação pública e gratuita. Assim foi no passado em muitas geografias do país. Hoje, a realidade é maioritariamente outra e esses convénios estão mais do que pagos. Hoje, parte das escolas públicas que convivem com colégios privados na vizinhança estão subaproveitadas e com poucas crianças, descaracterizadas, vítimas do desinvestimento e dos cortes de Crato na educação. A atual interpretação dos contratos de associação é inaceitável, restando a questão jurídica. E o mesmo raciocínio se aplica aos hospitais privados aos quais o SNS pagou cerca de 100 milhões de euros em vales-cirurgia entre 2013 e 2015, muitos deles em procedimentos discutíveis. A equação é clara: não se trata de saber se há dinheiro, mas antes de saber para onde ele vai.

A saúde e a educação são áreas onde o Estado investiu democraticamente e, pesem embora muitas críticas e apontamentos que se possam e devam fazer, dificilmente encontramos outras áreas onde o Estado tenha ganho tantas batalhas pela justiça social. A verdadeira liberdade de escolha dos pais e crianças não é "a-vaga-que-o-Estado-preenche-na-escola-que-o-Estado-escolhe-no-ensino-privado-que-o-Estado-resolve-financiar", tantas vezes por negociatas ou interesses velados. A verdadeira liberdade de escolha é quando o Estado devolve às famílias parte dos impostos que todos pagamos, sustentando opções de ensino público de qualidade e a possibilidade de as famílias (querendo ou podendo) optarem, pagando pelo ensino privado. Não há Estado sem redistribuição de riqueza. Nada me move contra a excelência de ensino em alguns estabelecimentos privados. Não me custa reconhecer que muitas dessas escolas batem aos pontos a qualidade de ensino de muitas escolas públicas. Pois esse é que é verdadeiramente o problema.

Artigo publicado em “Jornal de Notícias” a 1 de junho de 2016

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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