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A Primavera do Chile

Em abril deste ano haverá um referendo no qual os chilenos decidirão se querem ou não uma nova Constituição. Esperemos que a primavera chilena triunfe nas urnas e que estes ventos de revolta e de mudança possam chegar aos seus vizinhos latinoamericanos.

Em outubro de 2019, o governo chileno de Sebastián Piñera subiu em 30 pesos o preço dos transportes públicos. Este aumento despoletou uma revolta popular sem precedentes na democracia chilena. Desde aí, os chilenos começaram a sair à rua todas as semanas.

No pico desta revolta, quase um milhão e meio de pessoas desfilaram por Santiago. Piñera tentou ridicularizar este movimento, fazê-lo parecer irracional, pois tinha começado por causa de algo tão pequeno. No entanto, sabemos que o aumento dos transportes foi apenas uma gota de água que fez transbordar um copo tão cheio de injustiças intoleráveis.

O governo de Piñera sempre procurou passar uma imagem do Chile como uma “Suíça da América Latina”, um oásis europeu no meio de um continente “extremado” e “politicamente ativo”. Para isso, procurou que o Chile recebesse grandes eventos internacionais como a Cimeira do Clima das Nações Unidas e o fórum da Cooperação Económica Ásia-Pacífico. Ironicamente, as massivas manifestações obrigaram-no a cancelar estes encontros internacionais. Na realidade, convém não cair na falácia da direita chilena. O Chile não é uma exceção, ou um oásis na América Latina, é um país que partilha uma história de luta popular, de violência colonial e de terríveis intervenções norte-americanas como tantos outros do mesmo continente. Ora, é a história silenciada dos que lutaram e sofreram que explodiu nesta Primavera chilena, saem à rua não só estes milhões de chilenos mas também a memória sufocada (e que finalmente conseguiu respirar) das vítimas da ditadura, do colonialismo e da violência policial.

A 11 de setembro de 1973, um golpe de Estado apoiado pelos EUA inicia uma ditadura militar liderada por Augusto Pinochet. Nesse mesmo dia, termina o governo progressista da Unidade Popular, liderado por Salvador Allende. Nesses anos, houve um exponencial aumento da melhoria das condições de vida das classes trabalhadoras e encetou-se a nacionalização dos setores-chave da economia chilena. Aqui, é necessário sublinhar a importância da nacionalização do cobre (o Chile é um dos maiores exportadores mundiais de cobre) que foi um duro golpe para as multinacionais extrativistas. Esta violenta ditadura militar durará até 1990 e, durante esses 17 anos, prende, tortura e assassina milhares de opositores. Os principais perseguidos foram os membros do governo de Allende, do Partido Socialista, do Partido Comunista e do MIR (partido trotskista mais pequeno que os restantes parceiros da Unidade Popular).

Até aos dias de hoje, o Chile conta com milhares de desaparecidos cujos corpos nunca foram encontrados e para quem a justiça nunca chegou. Foram poucos os torturadores levados a tribunal. A memória da resistência e dos desaparecidos esteve, até outubro de 2019, enterrada num suposto consenso democrático pós-Pinochet. Nos anos da ditadura, Pinochet abriu as portas do Chile ao neoliberalismo mais selvagem, que levou direitos sociais, económicos e até a própria água. Em 1981, Pinochet privatizou a água. A água chilena, ainda hoje, pertence em grande parte a empresas privadas como a Nestlé.

Em 1988, sob um clima de contestação social, Pinochet leva a referendo a sua permanência no poder. O Não vence esta votação histórica e o ditador, sem apoio suficiente no exército, é obrigado a sair do poder. O Chile entra em democracia, no entanto, surpreendentemente, a Constituição manteve-se. O texto constitucional escrito por Pinochet e pelo seu círculo político continua a ser o pilar da vida política chilena.

Esta Constituição está no cerne da contestação social que eclodiu neste passado outubro. As leis que permitiram o desmantelar do Estado social e que abriram a porta ao neoliberalismo sem barreiras estão consagradas nesta Constituição. Além disso, a Constituição confere liberdades excessivas no campo da repressão de Estado: o estado de emergência pode ser facilmente utilizado para tentar conter manifestações e a polícia tem mão-livre e um estatuto de quase impunidade assassina. Isto tem-se visto de forma clara na resposta violenta que a polícia chilena teve durante os protestos do fim do ano passado.

O regime democrático chileno não teve um verdadeiro corte com o legado da ditadura. Quer seja do ponto de vista constitucional, ou da justiça para as vítima da ditadura, há uma continuidade com a ditadura militar que nunca foi quebrada. Ora, a primavera chilena vem quebrar esta corrente, vem exigir respostas para as famílias dos desaparecidos, julgamento para os agentes da DINA (polícia política de Pinochet), um fecho da porta ao neoliberalismo selvagem e uma nova Constituição que institua uma verdadeira democracia.

Em abril deste ano haverá um referendo no qual os chilenos decidirão se querem ou não uma nova Constituição. Esperemos que a primavera chilena triunfe nas urnas e que estes ventos de revolta e de mudança possam chegar aos seus vizinhos latinoamericanos.

Sobre o/a autor(a)

Doutoranda e Mestre em Antropologia. A estudar colonialismo, memória e cidade. Deputada na Assembleia Municipal de Lisboa
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