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Poupar euros ou poupar vidas? A propósito das urgências

A gripe faz disparar a afluência às urgências. Não há nisto qualquer novidade, só mesmo o ministro parece ter sido apanhado desprevenido… Paulo Macedo, como sempre tem acontecido, preferiu poupar a investir no reforço da capacidade de resposta do SNS.

Nas últimas duas semanas, o caos instalado nas urgências não deixa os telejornais. Não admira: os tempos de espera bateram todos os recordes, cinco pessoas morreram em diferentes serviços de urgência e todas enquanto esperavam para ser atendidas.

Só o governo e os partidos que o apoiam, PSD e CDS, acham que está tudo bem e que discutir a situação é politiquice e aproveitamento dos dramas humanos. Penso exatamente o contrário: se não falarmos do assunto, nada mudará e é exatamente por razões humanitárias que é necessário mudar. Sim, mudar para impedir que o descalabro a que assistimos se agrave, o que fatalmente acontecerá se o governo persistir em poupar e não em reforçar os serviços de saúde.

Só o governo e os partidos que o apoiam, PSD e CDS, acham que está tudo bem e que discutir a situação é politiquice e aproveitamento dos dramas humanos. Penso exatamente o contrário: se não falarmos do assunto, nada mudará e é exatamente por razões humanitárias que é necessário mudar

A atenção dos media centra-se nas urgências. Mas essa é apenas uma parte do problema. O caos nas urgências provocou a rotura nos serviços hospitalares e o colapso do SNS: os corredores estão repletos de macas com doentes que já não cabem nas salas de observação, nestas SO os doentes acumulam-se dias e dias seguidos porque não há vagas nos internamentos, por sua vez, superlotados com doentes graves a que não conseguem dar altas. Há cirurgias adiadas para libertar camas nos serviços de cirurgia de forma a permitir internar nessas camas os doentes que não têm vaga nos serviços que os deviam receber, há hospitais a adiar internamentos programados para libertar camas. Estão proibidas as transferências de doentes entre alguns hospitais. Concluindo, a crise extravasou os serviços de urgência, pôs em causa o funcionamento normal dos hospitais.

Tudo isto era previsível e evitável. Inverno, frio e gripe chegam sempre na mesma altura do ano. As características do vírus não são segredo, sabe-se que a vacina não cobre uma estirpe e que esta tem grande potencial infecioso. A gripe faz disparar a afluência às urgências. Não há nisto qualquer novidade, só mesmo o ministro parece ter sido apanhado desprevenido… Em 19 de Dezembro ainda dizia não ter qualquer dúvida que “o SNS vai responder”. Ele, ministro, é que não deixou o SNS responder. Paulo Macedo foi negligente e irresponsável por nada ter feito. Paulo Macedo, como sempre tem acontecido, preferiu poupar a investir no reforço da capacidade de resposta do SNS, num período onde já se sabia que ele ia ser sujeito a uma grande sobrecarga. E, sublinhe-se, só agora começou a epidemia, cuja fase mais aguda se prevê ocorrer na última semana de janeiro. E continuam a tardar as medidas.

Tudo era evitável se a preocupação de Paulo Macedo fosse a saúde das pessoas e não a saúde das contas, se a motivação de Paulo Macedo fosse a saúde do SNS e não a saúde da dívida e dos credores

Evitável, sim, tudo era evitável se a preocupação de Paulo Macedo fosse a saúde das pessoas e não a saúde das contas, se a motivação de Paulo Macedo fosse a saúde do SNS e não a saúde da dívida e dos credores. Mas mais uma vez, Paulo Macedo preferiu o corte e a poupança. Equipas hospitalares reforçadas, prolongamento dos horários dos Centros de Saúde, aumento de camas de internamento, são medidas viáveis e possíveis que teriam diminuído os impactos de uma afluência maior que a verificada ao longo do ano.

O problema das urgências é mais grave nos grandes centros urbanos, nos grandes hospitais onde há urgências polivalentes ou médico cirúrgicas. Nessas cidades os doentes não têm onde ir que não seja esses grandes hospitais, não há outra alternativa para aqueles casos que sendo urgentes não são graves. É a falta dessa alternativa que faz com que essas urgências tão sofisticadas fiquem superlotadas por doentes que podiam ser atendidos ao nível de uma urgência básica. Sucede que onde há urgências polivalentes ou médico cirúrgicas não há urgências básicas. É essa mudança, essa reforma que é urgente fazer.

Em fevereiro de 2014 o Bloco apresentou esse projeto de lei mas PS e direita votaram contra, impedindo que onde haja urgências polivalentes e medico cirúrgicas também funcionem as necessárias urgências básicas para atender a esmagadora maioria dos doentes e não obrigar as pessoas a esperar horas e horas para ser observado. Voltaremos a esta proposta porque uma das lições deste crise das urgências é exatamente a necessidade de mudar o modelo atual.

O colapso atual traduz, também, a exaustão a que o SNS chegou ao fim de 3 anos de sucessivos cortes no seu financiamento. Durante três anos a política de saúde enquanto instrumento de reforma e modernização dos serviços esteve suspensa, não existiu. A política de Paulo Macedo é exclusivamente a redução da despesa em saúde à custa do funcionamento da rede de cuidados

O colapso atual traduz, também, a exaustão a que o SNS chegou ao fim de 3 anos de sucessivos cortes no seu financiamento. Durante três anos a política de saúde enquanto instrumento de reforma e modernização dos serviços esteve suspensa, não existiu. A política de Paulo Macedo é exclusivamente a redução da despesa em saúde à custa do funcionamento da rede de cuidados. Ao fim de três anos, aquilo a que estamos a assistir é o SNS a ir-se abaixo, a dar de si, a fraquejar, a colapsar. Paulo Macedo pôs o SNS no osso… Não há propaganda, não há fervor partidário que consigam iludir o estado desgraçado a que o SNS foi conduzido pelo ministro Paulo Macedo.

Problemas destes verificaram-se ao longo destes três últimos anos. A primeira morte – conhecida – num serviço de urgência foi em 2013, no Amadora Sintra. Na altura reclamámos que o ministro ordenasse um inquérito à Inspeção Geral. Paulo Macedo recusou, nada disso, ficou-se pelo inquérito conduzido por um perito escolhido pela administração do hospital. Concluiu-se que a mulher tinha estado seis horas sem ser atendida, apesar de lhe ter sido atribuída uma pulseira amarela, cujo tempo máximo de espera é de uma hora. Que concluiu o perito? “Que a assistência prestada à utente…foi adequada”!!! Grande perito…E o ministro, como se costuma dizer, comeu e calou!

Este episódio – e tantos outros, não têm nada de sazonal, são infelizmente o retrato de um ministro sem autoridade política para ser mais exigente com as administrações que nomeou. Um ministro que maltrata os hospitais, que asfixia o seu orçamento, que retira autonomia técnica e profissional a quem trabalha e dirige os serviços de um hospital, perde toda e qualquer autoridade política para exigir mais responsabilidade, mais rigor, mais qualidade, mais e melhor desempenho aos serviços que tutela e a quem os dirige.

Aliás, e ainda no caso do Amadora Sintra, os médicos que chefiavam as equipas de urgência demitiram-se todos em novembro de 2014. Mas bastou uma declaração do CA dizendo que aquela demissão coletiva não afetava o funcionamento da urgência para o dr. Paulo Macedo esquecer e ignorar o problema. Alguém de bom senso pode acreditar que tudo estava bem na urgência daquele hospital?

Durante três anos, decisão após decisão, Paulo Macedo e grande parte das administrações por ele nomeadas, seja nas ARS seja nos hospitais, levaram a cabo uma política de esvaziamento do SNS. Fecharam hospitais, serviços e camas, limitaram os horários dos centros de saúde, desarticularam as equipas de urgência

Durante três anos, decisão após decisão, Paulo Macedo e grande parte das administrações por ele nomeadas, seja nas ARS seja nos hospitais, levaram a cabo uma política de esvaziamento do SNS. Fecharam hospitais, serviços e camas, limitaram os horários dos centros de saúde, desarticularam as equipas de urgência, permitiram as reformas antecipadas de médicos para que eles não faltassem nos grandes hospitais privados, promoveram a emigração de médicos e enfermeiros, impediram a passagem para as 40 horas de milhares de médicos especialistas, insistiram nas empresas que alugam mão de obra médica e de enfermagem por valores indignos para esses profissionais and so on.

Durante três anos Paulo Macedo e a sua equipa ocuparam grande parte do seu tempo – certamente no intervalo dos cortes – a inventar desculpas para o que corria mal: são os médicos que querem ganhar muito, os enfermeiros que se esgotam no pluri emprego, os profissionais que fazem férias quando não deviam. E até os doentes têm a sua culpa porque insistem em adoecer e teimam em procurar o SNS. Paulo Macedo imagina-se numa ilha rodeado de gananciosos, malandros, incompetentes e abusadores. Enfim, um incompreendido.

Paulo Macedo está enganado. Os portugueses compreendem-no muito bem. Aliás, bem de mais. Sabem que a sua política poupa muito euros mas não poupa vidas. E não esquecem que a primeira responsabilidade do SNS e do ministro que o tutela é, precisamente, salvar vidas. Não é isso que tem acontecido. Há muito que Paulo Macedo devia ter sido demitido.

Abaixo os vídeos de duas intervenções de João Semedo na Assembleia da República no dia 8 de janeiro, no debate sobre a situação das urgências hospitalares

Sobre o/a autor(a)

Médico. Aderente do Bloco de Esquerda.
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