Os tempos que correm trazem-nos desafios inesperados, que poderiam convocar a nossa reflexão. A comunicação de ideias e mensagens em “pós-verdade” trouxe renovados apelos ao ódio agindo em irresponsabilidade quase total perante o respeito para com pessoas e/ou comunidades. O ser humano transforma-se vulgarmente em carneiro que segue o rebanho e este segue o pastor.
“A pós-verdade é a aceitação de uma informação por um indivíduo ou grupo de indivíduos, que presumem a legitimidade desta informação por razões pessoais, sejam preferências políticas, crenças religiosas, bagagem cultural, etc. Assim, a pós-verdade não implica necessariamente em uma mentira (tendo em vista que a informação não verificada pode ser verdadeira), mas sempre implica em uma negligência com relação a verdade.”
A recente onda de violência, desencadeada pela extrema-direita inglesa, contra pessoas imigrantes e refugiadas partiu da informação – falsa – de que o assassino das três crianças era um refugiado. Os pais sim, eram imigrantes, o jovem é simplesmente um inglês. Para os incendiários da violência basta o jovem ser negro para ser sinónimo de imigrante ou refugiado. Ora se um jovem é negro, ou refugiado, ou imigrante, o adjetivo de criminoso transmite-se a toda a comunidade e toda esta está a ser atacada.
Estas situações não são novas no mundo e muito menos em Portugal. Vejamos a matança de judeus, em Lisboa, na Páscoa de 1506. Cito da Wikipédia: “A historiografia situa o início da matança no Convento de São Domingos de Lisboa, no dia 19 de abril de 1506, um domingo, quando os fiéis rezavam pelo fim da seca e da peste que grassavam em Portugal, e alguém jurou ter visto no altar o rosto de Cristo iluminado — fenómeno que, para os católicos presentes, só poderia ser interpretado como uma mensagem de misericórdia do Messias — um milagre. Um cristão-novo que também participava da missa tentou explicar que esse milagre era apenas o reflexo de uma luz, mas foi calado pela multidão, que o espancou até à morte”. A partir daí todos os judeus passaram a ser os hereges culpados da peste e mais de 4000 foram assassinados em apenas três dias por multidões em fúria.
Outro exemplo, bem contemporâneo, acontece entre nós quando um dirigente político ataca toda a comunidade cigana apelidando todas essas pessoas de ladrões e afins. O mesmo faz com os imigrantes acusando-os de viverem à nossa custa [não acusa os banqueiros] – sabendo perfeitamente que está a mentir –, pois os imigrantes dão lucro ao Estado Português e estão a contribuir com mais de mil e quinhentos milhões de euros para a segurança social, ajudando assim a pagar as reformas e os apoios na saúde de todos nós.
A recente polémica acusando a pugilista argelina Imane Khelif de ser trans e disputar um combate em posição mais favorável à outra atleta feminina trouxe à opinião pública uma variedade inaudita de disparates. Dirigentes partidários e de países, deputados [incluindo Rita Matias, do Chega], uma infinidade de gente que se tornou instantaneamente especialista em ADN, cromossomas X e Y, elegibilidade de género, testosterona, regras internacionais de boxe, (…), usaram a imprensa e as redes sociais para afirmar a sua ira contra uma mulher trans, afirmando ser um “atentado contra as mulheres e a propagação da ideologia de género” até nas olimpíadas.
Tal ira, nos e nas emissoras de opinião, tem três coisas em comum: I) pertencem ao lado extremista da direita, ii) nada fazem contra a violência doméstica que todos os anos vitimam dezenas de mulheres em Portugal e muitas milhares no mundo e iii) acusam uma pretensa “ideologia de género” para carrear ódio contra a diversidade humana, os direitos das próprias mulheres e a nossa própria democracia.
Por fim, sem qualquer assomo de petulância, será positivo que pensemos pela nossa própria cabeça, que construamos a nossa opinião, fundamentando-a, que debatamos em respeito e em solidariedade – sem ódios!
A pós-verdade, transformada em mentira, só cria ódio e transforma pessoas em carneiros!
Artigo publicado em Mais Ribatejo a 7 de agosto de 2024
