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Porquê o Miguel?

O Miguel é um exemplo. E o seu país, a começar pelo Estado, deve honrá-lo, garantindo-lhe toda a defesa contra um ato de perseguição da política do ódio.

No vídeo que divulgou nas redes sociais, ao contar as razões que o levaram a embarcar num projeto que salvou a vida de milhares de refugiados no Mediterrâneo, diz o Miguel: "Já tinha ouvido muitas notícias sobre o sofrimento dos migrantes e refugiados às portas da Europa e sempre tive a sensação que alguma coisa deveria ser feita. Uma pergunta ficava sempre minha cabeça: "Porque não eu?""

Miguel Duarte nasceu em Portugal, é estudante de doutoramento no Instituto Superior Técnico e tinha 24 anos quando se juntou, como voluntário, à associação Jugend Rettet. Entre 2016 e 2017, juntamente com os outros tripulantes do barco Iuventa, terá sido responsável pelo salvamento de cerca de 14 mil vidas. À coragem e grandeza desta ação humanitária, o Estado italiano contrapôs um processo judicial que o pode levar a passar os próximos vinte anos atrás das grades.

Que ninguém se engane: admitir a prisão de alguém que cometeu o "crime" de ajudar a salvar 14 mil vidas é uma perseguição. E uma perseguição, mesmo quando mascarada de processo judicial, é sempre um ato político. A Itália de Salvini, o ministro de extrema-direita que está hoje mesmo sentado ao lado de Trump, fecha os portos aos barcos que salvam vidas e bate com a porta aos direitos humanos.

Por cada vida que se perde no Mediterrâneo, há uma Europa mais cruel e desumanizada que se ergue. Uma Europa que esqueceu que já foi palco das maiores atrocidades.
As instituições europeias que se indignam com as pequenas transgressões italianas no défice orçamental são as mesmas que contribuem para manter o arame farpado na Turquia e o cemitério no Mediterrâneo. Os governos europeus que lucram e apoiam a venda do armamento para as guerras do Médio Oriente são os mesmos que calam perante a política xenófoba de Salvini e a indignidade nos campos de refugiados.

Em 2018, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, morreram no Mediterrâneo 2262 pessoas. Foram mais de 17 mil vidas perdidas nos últimos cinco anos, que transformaram o Mediterrâneo no maior cemitério a céu aberto.

"Porque não eu?", pergunta o Miguel. Porque, desta vez, o Miguel, como todos nós, teve a sorte de nascer de um lado da fronteira. O seu mérito é ser capaz de ver para além dela, com empatia e solidariedade. Mas porque é Miguel o alvo de Salvini? Porque os fascismos que se alimentam do ódio não suportam a coragem de um gesto justo.

O Miguel é um exemplo. E o seu país, a começar pelo Estado, deve honrá-lo, garantindo-lhe toda a defesa contra um ato de perseguição da política do ódio. Ninguém larga a mão de ninguém.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 18 de junho de 2019

Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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