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Porque o cheque-ensino é uma falácia desastrosa?
Foi uma das bandeiras do Governo de Passos Coelho e faz as delícias da turba liberal que saliva pelo financiamento estatal de colégios privados, enfatizando a figura do “Estado pai natal”, à boleia de uma falácia mascarada de “liberdade de escolha individual”.
O cheque-ensino, introduzido na Suécia em 1992, para fazer face à então decadência das condições nas escolas públicas daquele país nórdico, revelou-se um rotundo falhanço. Os EUA, onde o sistema também é aplicado, vão caindo posições no ranking PISA -Program for International Student Assessment -, que testa estudantes em 65 países. E a tendência tem sido para piorar.
Este sistema, no qual são atribuídos “vouchers” aos encarregados de educação que depois podem escolher a escola dos seus filhos, tem-se provado um falhanço a todos os níveis. A norta-americana National Education Association (NEA) apontou falhas gravíssimas ao sistema que grassa nos EUA e que a administração Trump queria aprofundar ainda mais.
Desde logo, aponta a NEA, as escolas privadas têm uma autonomia quase total relativamente ao seu funcionamento, incluindo quem ensinam, o que ensinam e como. São também as próprias escolas que medem o desempenho dos alunos e gerem as suas finanças.
Não é por isso de estranhar o aparecimento de várias fraudes com os cheques-ensino norte-americanos em escolas privadas de norte a sul do país. Várias investigações levadas a cabo no Indiana, Louisiana e Ohio desvendaram que os estudantes que frequentavam escolas privadas tinham, na realidade, piores classificações que os seus colegas das escolas públicas nas disciplinas centrais de matemática e português.
Um outro problema extremamente grave com que os norte-americanos se depararam foi a discriminação. Algumas escolas privadas religiosas dos estados do sul financiadas pelos vouchers pagos pelos contribuintes tinham políticas discriminatórias face à comunidade LGBT+ e aos alunos negros.
Por outro lado, em muitas áreas remotas, as escolas privadas não são sequer uma opção. Em Plevna, no Montana, por exemplo, o valor dos vouchers não era sequer suficiente para pagar a mensalidade da única escola privada existente na região.
Uma investigação realizada no Louisiana revelou que o programa estatal de cheques-ensino, no valor de 40 milhões de dólares anuais, retirou milhares de estudantes das escolas públicas e colocou-os em escolas privadas sem supervisão nem qualidade.
Revelou igualmente que as escolas privadas conseguiam “mascarar” a sua contabilidade e escapar aos requisitos exigidos aos estabelecimentos escolares do ensino público. Em muitos casos, não havia sequer forma de comparar ou garantir que os requisitos mais básicos exigidos às escolas públicas eram cumpridos nas suas congéneres privadas.
Na maioria das vezes, o custo das próprias escolas privadas que aceitavam cheques-ensino era superior ao valor do próprio voucher, excluindo à partida as famílias mais pobres. O sistema passou assim a constituir uma forma das escolas privadas poderem escolher os seus alunos, as suas regras e as suas práticas contabilísticas próprias.
As investigações revelaram ainda fraudes com o recebimento de fundos para estudantes que nem sequer existiam.
O catastrófico exemplo sueco
Nos anos 90 do século passado, o Governo sueco decidiu adotar o sistema de cheque-ensino defendido pelo guru liberal Milton Friedman, na esperança de melhorar a qualidade do ensino no país.
A educação foi aberta “ao mercado”, a qualquer “empreendedor” que quisesse “arriscar” um novo negócio, independentemente das suas crenças religiosas ou valores sociais. A única condição era conseguir atrair “clientes”.
Duas décadas depois, o país caia a pique nos rankings PISA. O departamento de educação sueco procurou então avaliar cerca de 50 mil alunos das mais de 700 escolas do país, reavaliando milhares de testes às disciplinas de inglês, sueco, ciência e matemática.
A Suécia normalizou os testes aplicados a todos os alunos do país, sendo que os resultados dos alunos se refletiriam na avaliação das escolas e até na manutenção das suas licenças. Como a avaliação era feita localmente, normalmente pelos professores das próprias escolas, é fácil de imaginar que os docentes distorceram os números.
O falhanço do modelo sueco do cheque-ensino é uma lição para quem defende que o “mercado” é a solução para todos os problemas. A educação não é um produto e a procura do lucro não se coaduna com requisitos de ensino.
Muitas escolas privadas faliram por não darem lucro, deixando mais de 10 mil alunos sem aulas de um ano para o outro. Vários grupos estrangeiros que, entretanto, haviam entrado no “mercado” sueco abandonaram a sua atividade por falta de perspetivas de crescimento.
Setores chave como a Educação não podem estar reféns das contingências do “mercado” ou das expetativas de lucro. O cheque-ensino é uma falácia, tem provado ser um rotundo falhanço nos países onde tem sido aplicado e é um fator de discriminação, de desvalorização do ensino e de piores resultados.
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