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Por um Serviço Nacional de Cuidados

O sector dos cuidados deverá ser repensado reforçando a oferta de uma Rede Pública capaz de proporcionar padrões condignos de atendimento.

Somos a geração que viveu o 25 de Abril e que ajudou o 25 de Abril a consolidar-se. Vimos o nosso país transformar-se, sair da ignorância e do obscurantismo e temos orgulho de ter participado activamente nessa transformação enquanto professores, o coração da Escola Pública, inscrita na Constituição da República Portuguesa. A Escola Pública, assim como o SNS e a Segurança Social são certamente das maiores conquistas saídas da revolução de Abril.

Passados quase 50 anos, como avaliamos a situação, agora que somos docentes aposentados, numa fase da vida cheia de desafios e de problemas novos e complexos? Ao longo destas décadas, assistimos ao ataque a esses serviços públicos essenciais, fruto de uma correlação de forças que geralmente olhou mais para os lucros do que para as pessoas e a satisfação das suas necessidades. O SNS, de que nos orgulhamos, veio ao longo do tempo sendo degradado e delapidado com opções governamentais que transferiram verbas para os privados e que, no período da pandemia, apesar da resposta pronta e corajosa dos seus profissionais, revelou toda a sua fragilidade. Não desvalorizando a realidade brutal de uma pandemia desconhecida, foi no período agudo da mesma que se tomaram medidas de emergência que restringiram direitos que, inexplicavelmente, se mantêm nos dias de hoje, passados dois anos e meio da erupção do vírus desconhecido, como recentemente denunciaram familiares de pessoas que vivem em lares, sujeitas ainda a inexplicáveis medidas de restrição às visitas.

A Resolução* que hoje estamos aqui a discutir e que considero muito completa e com propostas que respondem às necessidades desta fase das nossas vidas, elenca um vasto conjunto de exigências, nomeadamente no ponto 3. Sobre a medicina para o envelhecimento, as doenças mentais e a economia dos cuidados. O envelhecimento da nossa população exige do poder político medidas urgentes e inadiáveis. O trabalho de cuidados, essencial para a nossa existência, tem uma resposta pública residual, cobrindo apenas uma pequena parte da população, sendo a taxa de cobertura das mais baixas da Europa. Apenas 13% das necessidades reais são cobertas por cuidados formais, através de lares, centros de dia e apoio familiar. O acesso a serviços de cuidados está maioritariamente entregue a IPSS, co-financiadas pelo Estado e pelas famílias. Foi também no período pandémico que gritantes fragilidades de muitas destas instituições vieram ao de cima, identificando-se uma ausência de fiscalização por parte do Estado, relativamente ao cumprimento de condições dignas para os seus utentes, muitas vezes vulneráveis, mas que exigem direitos. O sector dos cuidados deverá ser repensado reforçando a oferta de uma Rede Pública capaz de proporcionar padrões condignos de atendimento, evitando a transferência forçada de pessoas para instituições que não reúnam condições de acolhimento aceitáveis, nem sejam o modelo desejável e o alargamento de Serviços de Apoio Domiciliário (SAD) de natureza diversa que incluem, por exemplo, pequenas reparações domésticas, limpezas, distribuições de refeições, compras, ou outro tipo de apoios. Para além disso, há que apostar na criação de alternativas à institucionalização e de fomento da autonomia, assim como à efectivação dos avanços previstos no Estatuto do Cuidador Informal. Todos os espaços de socialização como as Universidades Sénior, os Centros de Dia e de Convívio que combatam o isolamento e a solidão são fomentadores de saúde física e mental, que devem ser acarinhados e onde é preciso investir com meios técnicos e materiais. As respostas de apoio à família e ao longo da vida não podem ficar dependentes apenas do sector social. Das creches às respostas à terceira idade, é tempo de construir também redes públicas de equipamentos sociais.

Acresce referir que este sector, marcado pela precariedade e pelo sobretrabalho, por baixos salários e desvalorização das carreiras, deveria ter por parte do poder político uma atenção muito particular. Se exigimos a adequação da oferta de serviços à procura, pomos à cabeça a importância da valorização profissional deste sector laboral, que deve ser devidamente remunerado e sujeito a uma formação adequada na área da geriatria, quer do ponto de vista técnico, quer emocional.

Mas a grande maioria das tarefas do cuidado são maioritariamente asseguradas pelas famílias e, dentro delas, pelas mulheres. São os chamados cuidadores/as informais, pessoas invisíveis e invisibilizadas. Se consideramos que há que avançar no direito aos cuidados, como resposta à realidade demográfica do nosso País, não podemos continuar a desmerecer o papel dos cuidadores e das cuidadoras, merecedores de direitos e de protecção. Quando em 1979 foi criado o SNS, concretizando o direito à protecção da saúde, a prestação de cuidados globais de saúde e o acesso a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica e social”, nos dias de hoje há que aprofundar esses direitos e apostar na criação de um Serviço Nacional de Cuidados que encare os cuidados como um direito universal e uma responsabilidade colectiva.

* Intervenção feita na 3ª Conferência Nacional de Professores Aposentados da FENPROF, realizada em 29 de novembro de 2022.

Sobre o/a autor(a)

Professora aposentada, feminista e sindicalista
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