Populismo escondido com a cauda de fora?

porFrancisco Louçã

17 de junho 2023 - 15:40
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O populismo é um conceito de significados múltiplos e contraditórios e a sua única consistência é a forma de atribuição: esclarece mais sobre quem designa do que sobre o seu objeto.

Num raro arroubo doutrinário, o primeiro-ministro acusou há uns dias um seu aliado de ser “populista”. O crime era ter-se queixado do “pântano”. Foi admoestado, a palavra convocaria espíritos malignos. A partir dessa deixa, o Governo repetiu o refrão, tudo na oposição é “populista”. Não gostam do favor à banca nos Certificados de Aforro? Populismo. Queriam saber com que base legal é que o SIS interveio? Populismo. E da transferência dos partos para o privado? Populisíssimo. Assim sendo, entrando de rompante no arsenal adjetivante do Governo, a palavra merece consideração. A minha é esta: como foi usada, não significa nada; onde aparece reclamando algum conteúdo, é frequentemente tão ambígua que confunde em vez de esclarecer; e o único populismo que a Europa realmente viveu foram os fascismos.

A zoologia populista

Se o populismo é uma imagem, mais do que um conceito, o ataque ao populismo é uma síndrome e não uma doutrina. De facto, o termo tem sido usado para classificar movimentos historicamente divergentes, mas que seriam animados por um humor comum, a atitude litigante e messiânica: malgrado as suas diferenças, seriam populistas o peronismo e o castrismo, no sentido em que ambos usariam uma relação direta entre o líder e o povo, mas a confusão agrava-se, pois se o mesmo termo designa Le Pen e Gandhi, Nasser e Samora, Atatürk e Berlusconi, Chávez e Bolívar, Pepe Mujica e Orbán, Trump e Sanders, então não serve para nada. No entanto, tem sido aplicado ao PRI mexicano e ao Ba’hat no Médio Oriente, ao Cinco Estrelas e ao Sinn Féin, ao Occupy Wall Street ou o Tea Party. Nenhuma destas listagens tem coerência. Nuns casos são partidos de base popular, mobilizada contra as elites, noutros são partidos incrustados no aparelho de Estado; nuns casos são protestos contra a ordem social, noutros buscam o regresso ao passado; nuns casos disputam a representação eleitoral, noutros querem dispensar as urnas.

O primeiro-ministro fala de quase ninguém para acusar toda a gente. É o PS que mais se empenha em bloquear a comissão de inquérito e apontar a inconveniência irritante das suas questões

Por outras palavras, a medir pelo seu catálogo, o populismo é um conceito de significados múltiplos e contraditórios e a sua única consistência é a forma de atribuição: é uma designação adversarial que, portanto, esclarece mais sobre quem designa do que sobre o seu objeto. No mundo do uso intensivo da comunicação, esta acusação é usada para preencher o vácuo da política. Assim, é uma estratégia de nevoeiro que sofre de uma dupla ambiguidade. A primeira é que os discursos populistas, ou os antipopulistas, nem sempre se referem ao mesmo povo. A segunda ambiguidade é que os discursos populistas à esquerda, se o termo for utilizável, se referem à antinomia entre as massas e a oligarquia, ao passo que os populismos de direita se referem a uma pretensa tríade entre as massas, a elite e a classe média, que seria a sede da identidade nacional. Descontadas estas formas de designação polemizante, o populismo não existe como categoria transversal ao longo da história e os únicos regimes populistas triunfantes na Europa, os fascismos, mesmo que sejam uma fantasmagoria política que nos ameaça, existiram em condições específicas e com discursos distintos dos dos seus longínquos herdeiros (por exemplo, eram estatizantes e não neoliberais como a extrema-direita atual). Mais ainda, se fosse a hostilidade à democracia que definisse o populismo, então no melhor pano cai a nódoa: um banqueiro veterano, Hans Tietmeyer, que dirigiu o Bundesbank, não escondeu que preferia “o plebiscito permanente dos mercados globais ao plebiscito das urnas”. A generalização do termo “populista” é historicamente vazia e tende a ser politicamente desajustada.

As oposições são populistas?

Apesar destes paradoxos, terá razão o primeiro-ministro ao criticar os seus críticos como “populistas”? À direita, há populismos: Ventura faz-se aclamar como o representante de Deus na política e mobiliza o aparelho da devoção pelo chefe, para destroçar as outras formas de representação. É o populismo puro. Mas na esquerda raros serão os que se afirmam populistas. A razão poderá ser, segundo creio, que é desmobilizadora a ideia de que a política se reconstituirá por uma estratégia discursiva sem estratégia política, como se bastasse convocar uma latência, uma identidade à espera de ser reconhecida.

Chantal Mouffe, uma das mais destacadas promotoras da ideia, evoca outro dos seus criadores para resumir a ideia: “Proponho seguir Ernesto Laclau, que define o populismo como uma forma de construir o político que consiste em estabelecer a fronteira política que divide a sociedade em dois campos, apelando à mobilização dos ‘de baixo’ frente aos ‘de cima’.” É simples, só que é simples demais. Nenhuma política se pode construir na base de uma identificação mágica, muito menos se for uma promessa de vencer um conflito sem conflito. Bastaria descobrirmos que “somos 99%” para que as muralhas de Jericó caiam? Infelizmente, não somos 99% nem a sociedade é essa simples dicotomia entre cima e baixo, a hegemonia é mais complexa.

Assim sendo, o primeiro-ministro fala de quase ninguém para acusar toda a gente. E, ao mesmo tempo, paradoxo dos tempos, é o PS que hoje mais se empenha em bloquear a comissão de inquérito e apontar a inconveniência irritante das suas questões, para desvalorizar o Parlamento onde tem uma maioria absoluta aflita. Não será então essa degradação uma forma de populismo?

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 9 de junho de 2023

Francisco Louçã
Sobre o/a autor(a)

Francisco Louçã

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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