De fonte de autoridade a espaço do segredo, repositório de memórias e motor criativo de artistas e instituições, os arquivos vão assumindo performatividades específicas de acordo com os seus tempos e contextos. Nas artes performativas em Portugal, e a caminho dos 50 anos do 25 de Abril, a política para os arquivos alimenta uma estranha contradição: ao mesmo tempo que investe nos arquivos como fonte e espaço de criação artística, actua através de enormes ausências e de um «por fazer» que, quando se torna evidente, provoca uma reacção de espanto com uma interrogação: «Mas ainda não tinha sido feito?»…
Em Outubro passado, quinze companhias de teatro e dança apresentaram o trabalho realizado nos seus arquivos através do 1.º Programa de Apoio em Parceria CET/DGArtes - Arquivos das Artes Performativas, lançado em 2021, numa parceria entre o Centro de Estudos de Teatro e a Direcção-Geral das Artes (1). Todas, sem excepção, descobriram mundos esquecidos pelas próprias companhias. Entre documentos, textos, figurinos, maquetes, trajes, cenários, fotografias e vídeos, as décadas de trabalho de criação artística e a sua importância cultural ressurgiram como algo palpável e disponível para produzir conhecimento partilhado. Este trabalho permite começar a resolver o fosso de esquecimento a que grande parte dos artistas e das obras são condenados, fosso esse que alimenta a síndrome da originalidade e génio artístico ainda dominante no discurso governativo em Portugal.
Apenas alguns exemplos para se perceber a dimensão do trabalho. Através da iniciativa Lembrar o Futuro: Aquivo de Performances, Egídio Álvaro (1937-2020) (2) organizada no Espaço Rampa, no Porto, por Paula Parente Pinto, em 2022, iniciativa que deu origem ao sítio online Performing the archive, pode-se, entre outras coisas, conhecer a exposição «Perspectiva 74» (3), em exibição no próprio momento em que eclode o 25 de Abril de 1974, particularmente interessante considerando agora o contexto das comemorações dos cinquenta anos da Revolução. No Teatro Aberto, entre vários documentos e objectos, foram registadas 3725 tabelas de serviço desde 1988, sendo agora possível perceber métodos de produção e os seus intervenientes de forma detalhada. O Teatrão, depois de 34 anos sem tratamento do espólio, além de inventariar os materiais gráficos, adereços, figurinos, criou um banco de textos e procurou agora mapear as experiências dos espectadores para integrar no arquivo. Em Coimbra, a Cena Lusófona reuniu na sua Biblioteca e Centro de Documentação 6000 monografias, 260 registos audiovisuais (neste momento em digitalização) e textos de mais de mil dramaturgos em língua portuguesa. O Chapitô inventariou 8423 peças, 1300 rolos fotográficos, 122 838 fotos digitais, 1800 cassetes vídeo e 2500 peças de guarda-roupa. O Teatro Experimental do Porto, com um trabalho de arquivo de várias décadas, apostou na profissionalização da catalogação e na conservação e preservação de objectos e documentos com novo equipamento e material. No Acervo Filipe Crawford foram inventariadas 110 máscaras, além de fotos, trajes e figurinos, registados numa base de dados organizada por espectáculo. Em Sintra, o Teatro Mosca organizou o espólio de 1999 a 2018, incluindo anotações de ensaios e textos de espectáculos, disponibilizados através de um sítio online - Fabricar o Teatro (4) - organizado também por espectáculo.
Todas as companhias revelaram que o trabalho de arquivo reorganizou também a forma de produção artística
Todas as companhias revelaram que o trabalho de arquivo reorganizou também a forma de produção artística, com novos métodos que acompanham as séries descritivas das suas bases de dados e centros de documentação, o que é uma garantia de sustentabilidade criativa da própria companhia. A heterogeneidade de abordagens espelha os percursos radicalmente diferentes de cada companhia, o que levanta um problema futuro de coordenação entre bases de dados, nomeadamente com o Museu Nacional do Teatro e da Dança (MNTD), algo que será desejável para garantir uma acessibilidade alargada aos arquivos.
Todas as companhias realçaram a importância deste programa de financiamento para poderem desenvolver o seu trabalho
Várias das companhias revelaram a dificuldade em garantir a integridade dos arquivos, muitas vezes dispersos entre diversos locais, da companhia ou de pessoas privadas. E todas realçaram a importância deste programa de financiamento para poderem desenvolver o seu trabalho. E este será talvez o ponto decisivo para o futuro, porque a Direcção-Geral das Artes nunca se comprometeu com um programa sustentado para os arquivos.
Na sessão, o director-geral das Artes, Américo Rodrigues, confirmou os resultados positivos do programa. «Tudo levaria a pensar que deveríamos continuar», afirmou, inclusivamente para um programa «de apoio sustentado». No entanto, essa transformação «natural» dependerá de uma «reivindicação junto do poder político para que a linha continue». Na perspectiva de Américo Rodrigues, não será a DGArtes a única instituição pública a ter de suportar o encargo financeiro com este programa. É uma conclusão que considero errada, não apenas porque não honra a oportunidade criada e a história da instituição, como nem o orçamento (350.000 euros para dois anos de projecto) justifica introduzir complexidade política no processo.
Perante a demissão, tem a DGArtes espaço de manobra para assumir esta responsabilidade? Obviamente que sim
De facto, a DGArtes (nas sucessivas formas institucionais que assumiu desde a década de 1970) sempre foi o ponto de contacto natural da maioria das companhias de teatro e dança e tem, ou deveria ter, uma relação mais próxima com as companhias. Além disso, a DGArtes é o único serviço integrado do Ministério da Cultura com equipas e capacidade financeira para garantir a sustentabilidade de um programa deste tipo. E agora que lançou um programa-piloto, seria um erro perder a oportunidade histórica de garantir a sua longevidade. Tal não impede a necessária cooperação com outras instituições, a começar pelo MNTD, mas seria um erro fazer depender uma política pública com este potencial de uma barganha burocrática entre serviços dos Ministérios da Cultura e das Finanças. Nem o orçamento o justifica nem as competências necessárias o exigem.
Perante a demissão do governo ocorrida a 7 de Novembro último, tem a DGArtes espaço de manobra para assumir esta responsabilidade? Obviamente que sim. Relembro que este programa surgiu não só em plena crise pandémica como a decisão final dos resultados de financiamento aconteceu em cima da queda do anterior governo, em Outubro de 2021.
Os arquivos, funcionando para o futuro, sofrem de uma ansiedade da memória. Um anacronismo sempre futuro
Os arquivos, funcionando para o futuro, sofrem de uma ansiedade da memória. Um anacronismo sempre futuro. Seria um erro de tremendas consequências para as políticas públicas de Cultura não dar seguimento aos esforços já realizados com os arquivos das companhias, estabilizando práticas, organizando as redes e partilha de informação entre arquivos de artes performativas a nível nacional e internacional, estabelecendo definitivamente as práticas de arquivo nas artes performativas como um adquirido da infra-estrutura cultural do país.
Notas:
(2) www.rampa.pt
Artigo publicado em Le Monde Diplomatique (edição portuguesa, mês de dezembro de 2023)
