“´Plebeização` significa, nesta aceção, um amplo alargamento da base social da cultura moderna; mas, pela mesma razão, também um grande estreitamento da sua substância crítica, para produzir a insípida mensagem pós-moderna” (PERRY ANDERSON, As origens da pós-modernidade, 2005)
“O universo do pós-moderno não é, de facto, um universo de delimitação, mas de intermistura – celebrando o cruzamento, o híbrido, o pot-pourri” (Idem)
Vivemos tempos de fragmentação do discurso político baseado em narrativas curtas (por oposição às grandes narrativas da era moderna), que competem entre si em espaços reduzidos muito mediatizados. Nas sociedades capitalistas contemporâneas, muito modificadas pelas transformações impostas pela globalização, pelas políticas neoliberais e pelas transformações tecnológicas, com grande pauperização das relações do trabalho, “os que estão em cima têm a coerência do privilégio, mas os que se encontram em baixo carecem de unidade e de solidariedade”. Precisamos de refazer uma espécie de novo “trabalhador coletivo”, ou proletariado, isto é, neutralizar a pressão para a divisão entre as diferentes camadas de assalariados (e de outros oprimidos) e a aparente divergência de interesses vistos numa perspetiva meramente horizontal, para criar as condições que permitam superar uma certa indefinição de natureza vertical, insustentável no plano político de longo prazo.
Esta pressão para a fragmentação alicerça-se também na tendência para o contrato temporário, nomeadamente nos laços económicos tornados mais flexíveis e aparentemente criativos que os dos vínculos da modernidade. Os intérpretes sociais da cultura económica pós-moderna são gerados pelo rápido crescimento dos setores de serviços e especulativos das sociedades capitalistas desenvolvidas. Na realidade, por trás deles estão, de facto, as grandes empresas transnacionais e os grupos financeiros que determinam toda a nossa vida. As recomposições da ordem económica (industrial) mais antiga enfraqueceram as tradicionais relações de classe, enquanto se multiplicaram identidades segmentadas e grupos localizados baseados tipicamente em componentes étnicas e de género. Ou seja, à escala mundial, na era pós-moderna, não se cristalizaram estruturas de classe estáveis comparáveis às do capitalismo mais antigo e é essa indeterminação que facilita a dominação da minoria exploradora que nos governa. Sem combater esta pressão desagregadora da fragmentação horizontal no plano social, torna-se muito difícil encontrar as condições de recomposição vertical da organização política.
Não é por acaso que, desde os anos setenta, a ideia de vanguarda, incluindo no campo das artes, se tornou suspeita, favorecendo as dinâmicas de movimentos horizontais, em rede ou os nichos. A cultura do modernismo era tipicamente “elitista” (sobretudo no plano académico, formal, clássico), no sentido em que era produzida por génios solitários, minorias descontentes e rebeldes, vanguardas intransigentes. Mas era uma cultura antagónica, pois desprezava as convenções e desafiava o próprio mercado, mesmo quando tirava partido dele. A cultura do pós-modernismo é abrangente, vive da fluidez entre fronteiras de géneros “superiores” e “inferiores” e de suportes, e tornou-se mais “populista”, porque completamente assimilada pelos padrões de produção e consumo do capitalismo. Há, neste processo, como em qualquer outra realidade social complexa, efeitos contraditórios. Por um lado, há um efeito positivo de democratização, favorecendo a emergência de grupos até então excluídos, de mulheres, imigrantes, minorias étnicas e outros, suplantando o típico criador homem, branco e ocidental. Por outro lado, gerou-se um efeito de nivelamento em termos de qualidade no quadro mundial da escolha superabundante. Não há um grande sistema de legitimação e cada criador procura ser entendido a partir do seu próprio nicho de promoção. Dizem alguns autores que outrora a beleza podia ser um protesto subversivo contra o mercado e as suas funções utilitárias, hoje, a mercantilização da imagem absorveu-a na sociedade do espetáculo e é inútil esperar dela a negação da mercadoria.
Foi nesta cultura que cresceram conceções da história como um processo aleatório, as renúncias às abordagens pela ótica da totalidade social e as narrativas de emancipação dos oprimidos do capitalismo como “especulações de um sujeito (histórico) indeterminado”. Vivemos uma (falsa) dupla fragmentação, a que resulta das diferenciações geradas pelo capitalismo dentro do próprio proletariado (trabalhadores da produção e da área intelectual, trabalhadores diferenciados e indiferenciados, trabalhadores das esferas da reprodução social, saúde, cuidados ou ensino, trabalhadores inscritos nas plataformas digitais, imigrantes, trabalhadores atomizados); e a da emergência de segmentos oprimidos que ganharam novo protagonismo no contexto do refluxo do movimento organizado dos trabalhadores (mulheres, imigrantes, refugiados de guerra, grupos racializados, identidades de género tropeliadas, vítimas das alterações climáticas, etc). Se o discurso de combate ao capitalismo não promover a articulação destas diferenciações num projeto global, tornar-se-á o campo de uma política moderada, com pouca profundidade crítica em relação ao sistema. Será (é) a era da política moderada.
Pensar a verticalidade (partidos) e a horizontalidade (movimentos) da organização política em termos de ecologia de rede não muda esta última conclusão, só lhe confere novos contornos. Os levantamentos que se produziram por todo o mundo a partir de 2010 ocupando praças e ruas de grande simbolismo, e, em certo sentido, as campanhas de Sanders e Corbyn, abriram caminho para a ideia do partido das conetividades, cuja função principal seria fazer a ligação entre os agentes autónomos daquela ecologia, cada um com capacidade para assumir, de tempos a tempos, a liderança do “sujeito global”, mas oferecendo-lhes um serviço insubstituível de representação política. No limite o(s) partido(s) funcionaria(m) aí como a ala eleitoral de um movimento diverso, vigiado(s) para não se tornar(em) excessivamente autónomo(s). Ou seja, é o partido que não descola da ecologia em que se insere e não tem verdadeira autonomia estratégica. Vive nos limites da moderação.
Nunca, como nos dias de hoje, se sentiu tanto a falta de liderança, organização e orientação estratégica no campo da esquerda. Face à crise da social-democracia tradicional e ao desaparecimento do que resta do estalinismo abre-se um vasto campo de reconversão deste espaço político que é preciso saber aproveitar. Isso implica a construção de uma corrente revolucionária alternativa a todos os níveis, não só no plano ideológico, como ainda no terreno das organizações de massas de todos os tipos, nos movimentos e no âmbito local. É preciso saber quem está disponível para este projeto. E isto é o contrário do ambiente de dissolução política que se vem impondo com a política da moderação.
Artigo publicado em “Raio de Luz” de 28 de junho de 2024