O novo quadro político aberto pelas eleições de 4 de outubro veio trazer um fio de esperança ao país. Perante toda a destruição provocada pela austeridade e o muro da Comissão Europeia, pode nem sempre parecer muito mas é bastante para um povo que tem vivido os últimos anos sempre no fio da navalha.
Desde a primeira conversa com o PS, o Bloco de Esquerda quis assumir-se como uma garantia perante o país e por ela bateu-se despudoradamente: reverter as políticas de austeridade que nos deixaram em coma económico e em estado de emergência social.
De todas as medidas de recuperação de rendimentos que o Governo e o Parlamento já iniciaram, houve uma que causou uma inexplicável polémica: a reversão da Lei das 40 horas de trabalho para os funcionários públicos. O espanto pela reposição das 35 horas é incompreensível, desde logo, na medida em que os benefícios da imposição das 40 horas em 2013 nunca chegaram a ser explicados. O alargamento do horário de trabalho foi uma teimosia ideológica aplicada pela direita ao setor público com esperança de contágio ao privado.
Para esconder a irracionalidade da sua escolha, a direita agarrou-se agora à manipulação mais fácil da opinião publica recorrendo a truque antigo: colocar trabalhadores contra trabalhadores. É esse facilitismo argumentativo que pretendo desmascarar.
A base da suposta polémica reside na ideia de igualdade (entre trabalhadores públicos e privados) ou da falta dela. É a retórica preferida de quem resiste ao progresso e quer impedir a conquista de direitos. Sempre que um setor, um grupo, uma minoria, ou mesmo uma larga parte da população pretende melhorar a sua vida, há sempre alguém que se lembra da conversa da igualdade.
Em primeiro lugar, convém dizer que a direita só se lembra da igualdade quando é para retirar a todos, criando um inédito (e bárbaro) principio de tratamento menos favorável. Dita o bom senso (e toda a modernidade em matéria laboral) que a harmonização de direitos deve ser feita por cima, deixando todos um pouco melhor, em vez de arrasar pelo minimo e deixar todos bastante pior… Mas o bom senso não é compatível com obsessões austeritárias.
Sobre este primeiro argumento, gostaria de lembrar que o Bloco de Esquerda defende há muito tempo a diminuição do tempo de trabalho para o setor público e privado. Portugal é um dos países da OCDE, a par da Polónia, onde se trabalha mais horas. Está mais do que provado que isso não tem relação com a produtividade do trabalho, pelo contrário, menos horas de trabalho e melhor organização levam a um aumento da produtividade.
Para PSD e CDS/PP a igualdade é amizade recente e de circunstância. Não a conheciam quando impuseram 20% do peso total da austeridade aos funcionários públicos nem quando lhes cortaram, em média, o dobro do que foi cortado aos salários no privado. Percebe-se por que razão: a Administração Pública é um porquinho mealheiro que se parte quando não há coragem de ir buscar a outros setores. Estes trabalhadores acabam por ficar mais desprotegidos porque, no final das contas, o legislador é o “patrão”.
O Governo da direita não se lembrou da igualdade quando cortou os subsídios de férias e de natal aos funcionários públicos, mas o Tribunal Constitucional não se esqueceu. Aliás, dez vezes o anterior Governo bateu de frente com a Constituição e perdeu. Seis das dez medidas declaradas inconstitucionais eram ataques aos funcionários públicos.
Ainda assim, a lista é longa: regime de requalificação com cortes salariais e possibilidade de despedimento; horas extraordinárias mais baratas do que no privado; aumento das contribuições para ADSE de 1,5% para 3,5%; cortes salariais diretos; congelamento de progressão na carreira e valorizações remuneratórias; diminuição de dias de férias… ao que se veio juntar mais 20 horas de trabalho gratuito por mês. Entre 2010 e 2015 o ganho médio liquido mensal real dos trabalhadores da Administração Pública diminuiu 18,2% e ganho médio real por hora reduziu-se em 28,4%.
As 35 horas são uma conquista histórica dos trabalhadores da função pública e uma esperança de luta para todos os trabalhadores. Não faz sentido que no século XXI, depois de todos os avanços tecnológicos e de qualificação dos recursos humanos, continuemos a trabalhar as mesmas horas que os nossos antepassados (que faziam tudo à mão e necessariamente mais devagar).
Se queremos ser um país que está na corrida com a China pelos trabalhadores mais explorados, as 40 horas servem perfeitamente e até deve haver quem as queira aumentar. Mas se queremos um país avançado onde os trabalhadores têm tempo para a família, as famílias para acompanhar a educação das suas filhas e filhos, os trabalhadores para desenvolver as suas capacidades, se queremos um país onde produtividade se alcança com direitos, só podemos abraçar a ideia da diminuição do horário de trabalho. Com outra grande vantagem: a criação de emprego sem diminuição salarial.
E não vale a pena vir com o argumento do dinheiro. O objetivo das 40 horas nunca foi poupar, foi dar um sinal aos privados e aos mercados de que aqui o trabalho é barato e sem direitos. É essa página que temos de virar.