Há várias formas de ganhar e de perder eleições. Em 2015 isso ficou bem patente quando a coligação de direita foi a formação política mais votada, mas não conseguiu formar um governo. Abriram-se condições para a criação da Geringonça. Em 2022, o PS ganhou com maioria absoluta, mas perdeu o contacto com a esquerda e isso ajuda a explicar os erros em que se envolveu e que culminaram na queda do governo de António Costa. No atual contexto de empate técnico, mais uma vez, vale a pena tentar perceber o que é ganhar e o que é perder no campo da esquerda. Nem sempre uma vitória eleitoral se converte numa vitória política. A esquerda pode ter resultados eleitorais que apontem para a formação de um governo e não ter a maioria parlamentar necessária para o viabilizar. Mas, sobretudo, a esquerda pode formar um governo e não ser capaz de mobilizar uma maioria social para enfrentar a clivagem com o bloco das direitas que se antevê duradoura. Tudo isto porque a conquista dos indecisos e dos desiludidos, daqueles que já apoiaram a esquerda e mesmo dos que a continuam a apoiar só será possível com um discurso para a maioria das pessoas, mobilizador, garantindo melhorias do regime político em que vivemos.
Dir-se-ia que este processo não começou bem. Embora exista consciência da delicadeza da situação política, baseada no deslocamento dominante para a direita no plano ideológico e na ascensão de forças políticas conservadoras, nomeadamente de extrema-direita, a esquerda ainda não conseguiu encontrar a fórmula e a motivação que as circunstâncias exigem. É verdade que todos os partidos à esquerda já se mostraram disponíveis para viabilizar um governo minoritário do PS (se isso se justificar), mas faltou o desafio para juntar na mesma mesa as diferentes formações políticas e para a produção de uma declaração conjunta. Mesmo sem avançar com soluções e projetos, esta simples iniciativa daria o sinal de vitalidade que a esquerda perdeu há muito tempo. A vantagem da unidade, mesmo que baseada em objetivos mínimos, é que pressiona uma dinâmica cuja resultante é mais larga que o simples somatório das partes que a criaram. E marcaria o contraste com a direita incapaz de assumir a sua dependência em relação à extrema-direita. Nada disto é contraditório com o reforço desejado por cada partido, pelo contrário, esta seria talvez a forma mais adequada de o conseguir. Em vez disso tivemos iniciativas tentando tirar partido dos seus pontos fortes numa lógica de disputa artificial, secundarizando a natureza iminentemente defensiva da conjuntura que atravessamos.
Daqui não deverá decorrer a formação de um governo de coligação de toda a esquerda (ou uma Geringonça, não estamos em 2015), incluindo nele os partidos à esquerda do PS, em caso de vitória. Isso significaria, da parte destes últimos, aceitar durante quatro anos a disciplina de um governo fundado nos princípios da União Europeia em matéria económica orçamental e de política externa. A contestação a estes elementos, a par da contestação aos vestígios da Troika na legislação laboral (caducidade dos contratos de trabalho, princípio do tratamento mais favorável, indemnizações por despedimento) constituem os principais fatores de demarcação do Bloco e do PCP em relação ao PS. O PS deve poder contar com a restante esquerda para viabilizar o seu governo no Parlamento, porque o ciclo político mudou e está na ordem do dia evitar a criação de uma solução governativa de direita apoiada pela extrema-direita (ou seja, não é indiferente a natureza do governo que se possa vir a formar), mas um compromisso que responsabilize toda a esquerda pela governação tem riscos de dissolução política evidentes. O enfraquecimento da Unidas Podemos na sua coligação com o PSOE no estado espanhol, a par de outros episódios semelhantes que conduziram ao desaparecimento da esquerda radical na restante Europa (nomeadamente em Itália) são suficientes para justificar distanciamento. Há variadas oportunidades para tentar evitar a subversão dos elementos fundamentais do regime, nomeadamente as negociações em torno dos Orçamentos do Estado, trata-se de as aproveitar. Mas mantendo sempre independência política e autonomia.
a dissolução da esquerda é o risco que não podemos correr
Os riscos da atual situação política são vários, a começar pelo maior de todos, o de a esquerda não ser suficientemente convincente e ser incapaz de evitar a vitória que a direita persegue ansiosamente. A verdade é que o PS governou, só ou com apoios à sua esquerda, nos últimos oito anos e há um desgaste natural que acompanha a própria degradação da situação institucional, política e social. Há quem se sinta prejudicado por políticas dos governos do PS e há mesmo quem já tenha perdido a esperança numa regeneração do regime. Neste contexto, a esquerda, para voltar a ganhar precisa de fazer reviver uma chama que se esbateu muito nos últimos tempos e de trazer para o debate público uma novidade mobilizadora. Essa novidade deveria ser alavancada na ideia de unidade da esquerda para derrotar a direita, garantindo, ao mesmo tempo, que essa unidade não anula as diferenças no seio da própria esquerda. Porque a dissolução da esquerda é o risco que não podemos correr.
Artigo publicado em “Raio de Luz” de fevereiro de 2024