Podemos prescindir do jornalismo?

porJorge Costa

05 de dezembro 2019 - 23:30
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Para proteger a informação enquanto bem comum, precisamos de políticas públicas que deem condições de sobrevivência ao jornalismo.

Estão presentes em Portugal todas as grandes tendências de crise que marcam o panorama internacional dos media, mas a esse panorama juntam-se as nossas circunstâncias próprias - entre nós, a censura e o analfabetismo de massas não são registos de gerações passadas, antes marcaram a vida de muita da população presente; por outro lado, somos uma pequena economia subalterna no plano europeu, cuja escala é, só por si, um fator limitador do desenvolvimento da comunicação social.

Sendo portanto um dos países onde políticas de apoio à comunicação social e ao exercício do jornalismo mais falta fazem à partida, Portugal destaca-se entre os países europeus que menos recursos públicos mobiliza no apoio à viabilização da comunicação social, seja na garantia do serviço público, seja na promoção da pluralidade dos media, em geral.

E a independência, senhores?

O problema dos apoios estatais à comunicação social é habitualmente abordado a partir da ameaça que estes podem colocar à independência editorial dos meios de comunicação social face ao poder de Estado que cria esses apoios.

Essa preocupação é pertinente - e deve dar origem a garantias de transparência. Mas quando olhamos para a resposta do setor ao seu próprio empobrecimento - a resposta “de mercado” -, o que vemos é o agravamento da sua vulnerabilidade ao poder económico e às corporações, visível em infinitas “parcerias”, conteúdos patrocinados, publirreportagens e outros produtos híbridos em que se mitiga a fronteira entre jornalismo e publicidade.

Este poder absoluto dos anunciantes - rarefeitos na imprensa pela migração para as plataformas digitais - agrava todos os riscos da submissão editorial ao poder económico e de imunização deste ao escrutínio jornalístico.

A existência de um serviço público - RTP televisão/rádio e agência Lusa, hoje aliás enfraquecido em várias frentes - é ainda uma garantia democrática imprescindível e um fator de qualificação do panorama mediático. Mas esse serviço público, mesmo se fosse decididamente reforçado (o que não se vislumbra nas intenções do governo), nunca poderia garantir, só por si, a diversidade de perspetivas e a contraposição editorial cuja dinâmica é, na comunicação social, uma condição democrática essencial.

Quais as prioridades?

Ao concentrarem hoje 70% da receita publicitária, as plataformas digitais Google e Facebook estão a afetar dramaticamente a viabilidade da comunicação social, a vida das redações, o jornalismo como possibilidade. Sem que se perfilem no imediato, ou num prazo suficientemente curto, novas formas de financiamento que estejam à altura de substituir as anteriores, emerge uma verdadeira crise democrática, o perigo de escassez de informação credível.

Ora, a informação é um bem comum que cabe à comunidade reconhecer e proteger. Não é só o jornalismo que pode providenciar esse bem, mas só o jornalismo se sujeita à responsabilização deontológica e também por isso não podemos prescindir dele. E só a soberania democrática pode definir políticas para salvaguardar o interesse público e o direito a informar e a ser informado.

No debate da sobrevivência do jornalismo, interessam-nos medidas de política que, por um lado, aumentem a autonomia económica dos media face aos grandes anunciantes. Isso implica a promoção de vínculos fortes (assinaturas pagas e outros) entre o público, individual e coletivo, e os media. Por outro lado, urgem medidas que contrariem a clausura do jornalismo num reduzido conjunto de meios, concentrado nas mãos de um oligopólio privado. É necessário abrir espaço à afirmação de novos meios que mereçam apoio na exploração de formatos e comunidades de produção e distribuição de informação, sempre sob o vínculo às regras deontológicas do jornalismo profissional.

O Bloco de Esquerda não chegou agora a este debate e tem apresentado propostas consistentes com estas ideias e objetivos.

Proteger o serviço público:

O serviço público na comunicação social (RTP rádio/TV, Lusa) é o que garante o acesso gratuito e universal à informação como bem comum e, em princípio, à pluralidade do debate democrático.

Melhorar a autonomia dos meios de comunicação social face aos anunciantes:

  • Programa para a atribuição de uma assinaturas gratuita de imprensa generalista a todos os estudantes do 12º ano e do ensino superior;

  • Eliminação de IVA nas assinaturas comerciais.

Redução dos custos com a distribuição:

  • Reposição do porte pago como forma de apoio à distribuição, particularmente relevante para a imprensa local e regional;

Fomento dos géneros jornalísticos diminuídos sob o peso da crise (investigação jornalística, grande reportagem, etc):

  • Bolsas estatais, dirigidas às empresas de media, aos media comunitários e novos projetos, e ainda a profissionais individuais - sob decisão de júris plurais e independentes;

Combate à concentração dos meios de comunicação social:

  • Reintrodução de limites à concentração de órgãos de comunicação social regionais e locais

  • Criação de um fundo de financiamento público de risco para estímulo à criação de novos media, com estímulos públicos que mitiguem as dificuldades comerciais do seu arranque (instalações, formas de apoio técnico, condições de crédito e fiscais) para permitir o ensaio de novas formas de produção jornalística independente do oligopólio.

A questão da transparência destes apoios começa por colocar-se no plano da boa utilização do dinheiro dos contribuintes. Estes apoios devem estar condicionados à verificação da boa gestão destes grupos e do respeito pelos seus profissionais. A concessão de fundos públicos a um determinado órgão de imprensa não pode conviver com o estrangulamento na prática desse órgão ou dos direitos dos seus profissionais (tal como não é admissível que na RTP ou na Lusa permaneçam vínculos ilegais com jornalistas e técnicos).

Em segundo lugar, cada euro público despendido em apoios específicos a empresas de comunicação social deve estar publicado em portal próprio para escrutínio público; mais: os contratos de publicidade institucional do Estado e das autarquias devem ser registados numa base consultável, impedindo favorecimentos particulares e assegurando o direcionamento de pelo menos 25% dessa publicidade para a comunicação local e regional.

Como financiar estas políticas?

Em julho passado, depois de obter luz verde no senado, o parlamento francês aprovou a lei que irá taxar as cerca de trinta empresas digitais com um volume de negócios global superior a 750 milhões de euros. Para além das quatro gigantes do setor, que dão nome ao “imposto GAFA” (Google, Apple, Facebook e Amazon), também a Airbnb, Meetic, Instagram ou a francesa Criteo irão pagar 3% do seu volume de negócios no mercado francês.

A proposta agora aprovada em França assemelha-se a uma iniciativa que o Bloco de Esquerda levou a votos na Assembleia da República em março deste ano. O projeto de lei ficou conhecido como o “imposto Google” e prevê angariar 60 milhões de euros por ano, permitindo financiar o combate à desinformação nas redes e projetos de apoio à sobrevivência e pluralidade do jornalismo.

É apenas uma primeira medida de mitigação dos efeitos do poder desmesurado das plataformas digitais, mas esta proposta tem enfrentado enormes resistências em todo o lado onde surge. Não só porque estas plataformas, com os seus algoritmos, podem afetar diretamente a pequena parte de receitas de publicidade digital angariada pelos perfis próprios da imprensa nas redes sociais, como são representadas diretamente pela administração Trump, que ameaçou com represálias sobre as importações francesas, por exemplo. É comum ouvir-se, como aconteceu no voto do PS e da direita contra a proposta do Bloco, aquele velho bordão: “um país não pode avançar sozinho”.

O ponto é que outros já estão a avançar. E quem se limitar a constatar que “os tempos mudaram” não deve, depois, chorar o cadáver do jornalismo e o triunfo da rede populista de direita e dos “factos alternativos”. A passos largos, vai-se impondo a escassez desse bem comum que é a informação verificada e credível, recurso do qual depende a responsabilização do poder, o debate plural e a escolha democrática. Se nada fizermos para o proteger, sentiremos dramaticamente a sua falta.

Este artigo resulta da intervenção de Jorge Costa, em representação do Bloco de Esquerda, na conferência organizada pelo Sindicato dos Jornalistas sobre “Financiamento dos Media”, 2 e 3 de dezembro de 2019.

Jorge Costa
Sobre o/a autor(a)

Jorge Costa

Dirigente do Bloco de Esquerda. Jornalista.
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