Está aqui

Pode uma reforma do estado “ser o que não é”?

O caso da descentralização de competência em Educação para os municípios. Um dos melhores exemplos dessa polissemia e da manipulação dos conceitos e do seu sentido é o que está a acontecer com a anunciada “descentralização de competências”, nomeadamente no que à Educação diz respeito.

A polissemia é um dos efeitos do pós-modernismo dos anos oitenta do século passado, que perdura até à atualidade e permite não só convocar conceitos com sentidos à medida do argumentário e frequentemente pouco explicitados, como permite, do ponto de vista político, anunciar algo e concretizar uma outra coisa. Um dos melhores exemplos dessa polissemia e da manipulação dos conceitos e do seu sentido é o que está a acontecer com a anunciada “descentralização de competências”, nomeadamente no que à Educação diz respeito.

Nos anos oitenta do século passado, João Formosinho, relativamente à “administração educativa”, identificou três diferentes tipos de administração, que, como tipificação científica que é, permite uma leitura e uma interpretação do atual e anunciado “processo de descentralização” e que será em breve formalizado entre o atual governo de maioria socialista e a Associação Nacional de Municípios.

Segundo o mesmo autor, e de um modo necessariamente sintético, desenham-se três tipos de administração educacional: a centralizada, a desconcentrada e a descentralizada. No primeiro tipo, as decisões são tomadas no topo do sistema às quais os serviços locais se subordinam e há uma clara separação entre quem concebe e que está no órgão central e quem executa e que está na base. No tipo “administração educacional desconcentrada” as decisões em certas áreas podem ser tomadas em níveis hierárquicos intermédios e inferiores, mas sujeitas a revogação superior e são uma extensão dos serviços centrais. No tipo “descentralizado” são criados órgãos locais não dependentes da administração central, com direção e competências próprias e representando os interesses locais, remetendo-se o estado à fiscalização dos atos administrativos.

As extensões dos serviços locais do tipo “desconcentrado” apresentam vantagens para a administração central na medida em que representam formas de assegurar e descongestionar serviços centrais, os serviços tornam-se mais eficientes, mais rápidos e adequados às soluções e são uma forma de reforço do poder central.

No sentido oposto, a “descentralização” corresponde a formas mais democráticas e participativas de administração, fomenta a dinamização de outras instituições democráticas que animam o tecido social, funcionando como contraponto a um estado omnipresente e asfixiante.

Uma vez esmiuçado o sentido dos conceitos “desconcentração” e de “descentralização”, segundo João Formosinho, fica claro que o atual processo de “transferência de competências”, por parte da administração central para as autarquias em praticamente todas as áreas, onde se inclui a Educação, se enquadra mais no tipo de administração desconcentrada do que na proclamada descentralização.

Esta falta de definição semântica, que confunde, intencionalmente, desconcentração com descentralização, bem como delegação com transferência, tem efeito encantatório por parte dos executivos municipais, mas é, ao que tudo indica, uma “desconcentração”, em que um poder absolutamente autónomo e descentralizado, o autárquico, aceita e, na maior parte dos casos, reivindica, uma delegação de competências na qual o poder de decisão continua a ser do estado central, até por ser quem viabiliza do ponto de vista financeiro esta delegação. Na verdade, tornará o poder autárquico mais dependente do poder central, o que pode suscitar desenvolvimentos difíceis de prever no que à garantia da universalidade dos serviços públicos diz respeito.

Por outro lado, há um papel a desempenhar por parte das autarquias no que à Educação diz respeito. Para Lima (2015), os municípios têm o direito e o dever de ter responsabilidades neste setor, de que é exemplo o projeto educativo municipal, que não pode sobrepor-se ao de cada escola ou agrupamento de escolas. No entanto, frisa o autor, o reforço das competências das autarquias não pode ser feito à custa da autonomia das escolas. Este autor alerta ainda que a atual delegação de competências significa uma dupla tutela das escolas, que além da do Ministério de Educação, passam a ter a do Município, o que representa uma dupla subordinação, num quadro já demonstrado de desconcentração e não de descentralização. Destaca ainda Licínio Lima, que a subordinação das escolas à autarquia, pela proximidade territorial, permitirá exercer sobre elas um controlo muito maior. O reverso desta medalha é a possibilidade de os pais e encarregados de educação poderem, eles próprios, exercer um escrutínio muito mais próximo da ação de uma das tutelas, neste caso, a autárquica, o que, sendo um efeito não esperado, pode contribuir para equilibrar o tripé Ministério da Educação-Autarquia-Agrupamento de Escolas, no qual o lado da escola é o mais fraco.

Lima evidencia que, não tendo as câmaras os meios científicos, técnicos e pedagógicos, que há o risco da terceirização, de que já são exemplo as refeições escolares, as atividades de enriquecimento curricular e as Cartas Educativas Municipais. Neste último exemplo, pode resultar a uniformização e homogeneização destes documentos orientadores, uma vez que a empresa que os elabora trabalha para diferentes municípios, o que pode significar perda de aspetos identitários e coletivos e de especificidades territoriais, de que já há exemplos, como as Cartas Municipais de Habitação.

A centralização do sistema escolar é uma invariante estrutural desde sempre, considera Lima (2015) a qual, a par da normativização excessiva (potenciada pelas plataformas digitais), remetem a escola para o estatuto de serviço periférico, isto é, uma extensão do Ministério da Educação, com uma direção atópica, de fora para dentro e de cima para baixo. O sistema de administração escolar é monocêntrico, indiferente aos princípios da descentralização democrática, pese embora a retórica frequente e os abundantes normativos sobre o “reforço da autonomia das escolas”.

Lima diz ainda que o processo de descentralização em curso faz tábua rasa da Lei de bases do Sistema Educativo onde está consignada a criação de órgãos regionais de Educação na sequência da eternamente adiada regionalização.

Por isso afirma, na senda de Formosinho, que a administração escolar é centralizada-desconcentrada e que a desmaterialização dos processos é mais uma das expressões do governo das escolas por controlo remoto.

Mais ainda, a delegação de competências, que não é o mesmo que transferência, introduz formas novas de tutelar, controlar e administrar o próprio poder local, restringindo a sua autonomia legítima, além de menorizar os próprios municípios ao pressupor processos de contratualização, ao impor as novas regras de gestão e de consignação de verbas e ao impor ratios de vária ordem.

Por isso, estes desenvolvimentos são particularmente visíveis nas delegações de competências no domínio da Educação para os municípios. Trata-se de uma desconcentração administrativa e de uma subordinação aos serviços centrais e que comporta uma complexidade elevada. Desde a gestão do pessoal não docente e docente (contratações para atividades de enriquecimento curricular), a formação contínua, a definição de estratégias locais de promoção do sucesso escolar, as cartas educativas, a rede escolar, os planos municipais de educação, as atividades, matrículas e até aos procedimentos disciplinares de alunos decorrentes de participação no Conselho Geral, passando pela manutenção e recuperação do edificado escolar que não pertence à empresa Parque Escolar, estão já concretizadas.

Neste quadro de delegação de competências “as escolas permanecem sob uma condição de generalizada retórica sobre a sua autonomia, (…) arriscam perder certas competências, já de si periféricas e frágeis, num eventual e emergente movimento de desconcentração administrativa operada a partir dos municípios portugueses” (Lima, 2015:23). Nessa altura, Lima afirmava (idem, ibidem) que “As escolas serão forçadas a aderir a projetos-piloto sobre os quais nada terão a dizer” e, uma vez consumados os acordos, é de prever que aconteça a terceirização de que já são exemplo as refeições escolares, as cartas educativas e as atividades de enriquecimento escolar.”

Já o Conselho Nacional de Educação, no parecer publicado em Diário da República em 2018, destaca que “Tratando-se da transferência de competências de matéria estruturante num sistema educativo marcadamente caracterizado pela administração centralizada, seria aconselhável que, por ocasião da universalização deste processo de descentralização, se procurasse alcançar o mais amplo consenso entre os vários parceiros sociais, e não apenas com a Associação Nacional de Municípios. Seria igualmente relevante fundamentá-la explicitamente em adequada avaliação dos ensaios anteriores”, reportando-se o CNE ao facto de os projetos-piloto de 2015 nunca terem sido alvo de qualquer forma de avaliação. Como tal, sugere que, desta vez, “esta transferência de competências para as autarquias locais e entidades intermunicipais tivesse subjacente, de modo explícito, uma visão integrada e devidamente fundamentada da partilha de competências entre a administração central, as escolas e as autarquias, para não aparecer como uma política isolada, centrada apenas num dos intervenientes (DR p. 4130).

O CNE acrescenta ainda que “a gestão dos recursos e processos indispensáveis para operacionalizar as ofertas de educação e formação nas escolas da rede pública deve ser exercida prioritariamente pelos órgãos das próprias escolas” e dá conta que nos países com experiência na municipalização ou com tradição em autoridades educativas locais, são atribuídas mais competências e responsabilidades às escolas.

O exemplo das cantinas escolares, das atividades de enriquecimento curricular e dos transportes de alunos são elucidativos. Por incapacidade de gerir estas três áreas, por falta de recursos humanos, pedagógicos e técnicos, as autarquias foram levadas a externalizar estes serviços. Ora, como os processos concursais levam à seleção da empresa que apresenta valores mais baixos para o serviço que vai prestar, o controlo dos custos de produção levará, inexoravelmente, a uma diminuição da qualidade do serviço prestado. Veja-se o exemplo propalado na comunicação social da fraca qualidade das refeições escolares ou das aulas de AEC plantadas no meio do horário escolar para servir o interesse de empresa que anda de escola em escola a prestar este serviço.

Veja-se ainda o exemplo do cancelamento dos transportes escolares quando foi decretado o confinamento e o encerramento das escolas, deixando vários milhares de cidadãos, sobretudo dos concelhos mais excêntricos, sem qualquer meio de transporte. Neste caso, a privatização de um serviço público essencial revela-se particularmente lesivo, já que só existe em função dos lucros que gera ou dos financiamentos públicos que capta. Não existindo nem uns nem outros, o serviço perde qualidade e ao primeiro pretexto, é extinto. A privatização dos transportes e a delegação de competências quanto ao transporte escolar para os municípios, sob a supervisão da Comunidade Intermunicipal, depois tornada necessária, piorou o serviço numa época em que por razões ambientais e ecológicas é essencial expandir o transporte coletivo público e não a sua privatização, o que mantém o automóvel como paradigma de deslocação, incluindo a deslocação casa-escola. O transporte escolar pode parecer uma questão dissociada da temática em análise, mas na verdade é um dos exemplos de como as decisões e as ações políticas têm de estar cada vez mais articuladas e em sintonia tendo em conta a complexidade e o caráter estrutural da maioria dos desafios que se colocam à administração pública.

Afigura-se como sendo muito preocupante a delegação de competências, debaixo do chapéu de uma “descentralização” que é, na verdade uma “desconcentração”, não só por razões financeiras, mas sobretudo por razões humanas e técnicas. E, aqui chegados, a questão que se impõe é a seguinte: têm os municípios escala para o volume extraordinariamente grande de competências em processo de delegação? Configurando uma reforma do estado profunda, da qual não há sinal de haver estudos, análises, acordos, diálogos, concertações, diligências, nem desenhos prospetivos, seja um verdadeiro “tiro no escuro”, num já habitual modus operandi do decisor político português, que consiste em primeiro legislar e, depois, logo se verá como corre. Note-se a este propósito que não houve num processo avaliativo dos projetos-piloto iniciados em 2015, o que dá a entender que o decisor considera a bondade da medida per si e suficiente para que seja generalizada, sem que alguma vez tenham sido pesadas as consequências diretas e indiretas, os efeitos previstos e não previstos e, até à luz das novas teorias da gestão pública, se houve ganhos de eficácia e de eficiência.

Ora, num país de baixos recursos e a braços ainda com problemas estruturais, este processo falsamente designado como sendo de “transferência de competências” será mais uma forma de terciarização de serviços públicos essenciais e que respondem a direitos dos cidadãos e das cidadãs consignados constitucionalmente. Tendo em conta o que já é do conhecimento público quanto às refeições escolares e aos transportes, esses direitos correm o risco de estarem comprometidos.

Assim, como nos diz João Formosinho (cit in Martins, Fernanda, 2022) a “descentralização é pois um problema político em primeiro lugar, e só acessoriamente um problema técnico”, isto porque, “a gestão dos interesses locais pelos próprios não se consegue justificar apenas porque é mais eficiente, mas porque incentiva a participação dos cidadãos na gestão da administração pública.”

Deste modo, podemos considerar que um processo de descentralização é algo de mais democrático e participado, em que os níveis de autonomia são reais e efetivos, ao passo que num processo de desconcentração a expressão autonomia é mais um conceito gasto e despido de sentido.

Tendo ainda em conta que a generalidade dos municípios são de pequena ou de média dimensão, com poucos habitantes, com poucos recursos humanos e técnicos, muitas das tarefas da suposta descentralização serão contratualizadas por empresas que adaptam os mesmos projetos aos diferentes concelhos, contribuindo para uma homogeneidade e indiferenciação.

Daqui se conclui que a reforma do Estado, em curso desde a presença da Troika e das medidas de austeridade, segue o seu percurso reformista natural de externalizar os serviços públicos a privados, como forma de resolver o suposto gigantismo do aparelho de estado e permite que deixem de ser garantidos direitos no setor público, num governo que é há quase sete anos socialista, que tem para os próximos anos uma maioria absoluta, mas que favorece a iniciativa privada e os grandes interesses privados, que assim, veem nesta suposta descentralização, uma oportunidade de fazer mais lucros.

Neste quadro de falsa descentralização, as escolas, em lugar de verem a sua autonomia reforçada, veem-se na situação de perda de competências, de aumento da sua fragilidade e de terem de responder a duas tutelas que quase nunca articulam entre si, num ambiente de tensão crescente, do qual não se adivinha nada de positivo como resposta aos desafios com que a Escola Pública se depara, seja na resposta à crise de falta de professores, seja na inclusão de toda a diversidade cultural e social que a escolaridade de 12 anos acarretou e para qual são necessárias respostas adequadas.

Bibliografia

Conselho Nacional de Educação (2019). Recomendação nº1/2019. In Diário da República n.º 21, 2ª série, de 30 de janeiro de 2019, página 4129 a 4132.

Lima, Licínio (2015). O Programa “Aproximar Educação”, os municípios e as escolas: descentralização democrática ou desconcentração administrativa? In Questões Atuais de Direitos Local, páginas 7 a 24.

Martins, Fernanda (2022). Municípios e escolas: políticas, práticas e desafios. Texto de apoio à V Oficina do XV Curso de Verão “Os Diretores escolares em Ação: Democracia, Autonomia e Performatividade.

Sobre o/a autor(a)

Professora de História e Sociologia da Educação. Dirigente do Bloco de Esquerda
(...)