Está aqui

A pobreza que nos esmaga

A COVID não tem culpa nesta pobreza evidente. A doença, a falta endémica de recursos, o empobrecimento que ganha terreno, as desigualdades: um cenário obrigados a vencer.

A persistência e alastramento da COVID 19 revela situações que sabíamos existir mas que não estavam tão à vista como acontece agora. Não há novidades no género mas na quantidade e profundidade. A situação com os mais velhos, institucionalizados em lares, é aquela que mais nos choca: uma população mais frágil, com menos hipóteses de escapar ou de se defender perante um vírus que encontra nos lares um habitat privilegiado para se propagar, mas alternativas não as há. A COVID veio destapar as nossas enormes fragilidades como sociedade. A pobreza em todo o seu esplendor. A fome que insidiosa alastra, muitas vezes envergonhada; ou uma alimentação errada como solução para iludir a fome; a distribuição de bens alimentares que aumenta como não há memória; as habitações exíguas para agregados familiares de três ou quatro pessoas, habitações sem condições de habitabilidade construídas sem atender a parâmetros de qualidade convidando à humidade e ao frio, já para não referir as “casas” em bairros de lata, cobertas com chapas de zinco, sem esgotos ou água corrente; a procura reduzida dos serviços de saúde ou da aquisição de medicamentos, tudo por falta de dinheiro. Que a COVID estava a funcionar como uma espoleta nos lares tínhamos referido há uns meses (Uma espoleta chamada covid-19, Esquerda.net, 13 Out 2020) mas toda esta extensão, afectando o todo da sociedade em tantas vertentes, é absolutamente catastrófico. Em artigo publicado há uns dias (Sindemia: factores de risco e desigualdades na pandemia, Le Monde Diplomatique, Janeiro 2021) Isabel do Carmo faz uma análise pormenorizada e fundamentada das questões socioeconómicas que a COVID envolve. Não refere tanto os lares, debruça-se preferencialmente sobre as questões da alimentação e nutrição e também sobre as doenças inerentes. E explica como uma clareza indiscutível como tudo se relaciona, como entre classes sociais e factores de risco existe uma interdependência inegável, como tudo se desenvolve num ambiente sindémico e como este agrava as desigualdades socioeconómicas pre-existentes à COVID. Qualquer opção dirigida em exclusivo para o combate à COVID fica aquém das nossas necessidades. Matará o vírus mas não as desigualdades, pelo contrário, agora agravadas. É injusto e irrealista lançar todas as culpas sobre a COVID, servirá para nos distrair, mas depois da COVID ficaremos a braços com tudo o resto, uma sociedade escaqueirada, à espera de uma intervenção capaz de ultrapassar todas as carências entretanto reveladas cruamente. A solução não passará apenas pela bazuca financeira prometida pela Europa, a sua execução, as escolhas que definirão a sua distribuição vão constituir dificuldade maior a exigir rigor e seriedade. Ou seja, uma vez a COVID vencida fica a faltar tudo o resto.

A questão, portanto, não é a COVID mas o que a COVID nos atirou à cara, não nos permitindo desculpas ou alibis para assobiar para o lado. Iremos ficar com sequelas no post-COVID do ponto de vista da saúde; resta saber se as consequências socioeconómicas não serão bem mais pesadas a acreditar naqueles que afirmam que esta crise ultrapassará em gravidade a que vivemos entre 2008-2015. Não são apenas os cerca de 2 milhões de portugueses com pensões muito baixas mas todos os outros que têm salários miseráveis, um universo que tem vindo a aumentar de forma vertiginosa e assustadora; são os empregos que não voltam; os estudantes que ficam pelo caminho; as estruturas que ficaram arruinadas e cuja recuperação é altamente duvidosa nomeadamente no sector da cultura. E também todos aqueles que se sentem impotentes para a reconstrução depois de tantos anos, propostas, alternativas as mais das vezes sem sucesso. Com urgência há que vencer a COVID enquanto tentamos reunir ânimo, identificar competências e saberes para enfrentar e recuperar o que, debaixo dos nossos narizes, se desmembra.

Uns dias atrás nos EUA, depois de anos desesperados, acendeu-se uma luz ao fundo do túnel com a tomada de posse de Joe Biden. Na cerimónia, The hill we climb um poema, ou espiritual, cheio de força e esperança de Amanda Gorman dito pela própria, brilhante, com alegria e confiança contagiantes terminava lançando um apelo de resiliência aos seus compatriotas. Porque na força daquelas palavras reside universalidade, transcrevo os últimos três versos: For there is always light,/if only we' re brave enough to see it./If only we're brave enough to be it. Nos Estados Unidos sim mas aqui, também.

Sobre o/a autor(a)

Bibliotecária aposentada. Activista do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
(...)