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Perspetivando a escolaridade em ciclos

Na Europa, mais de 10 países têm um percurso único de nove anos com uma transição gradual da monodocência. Em Portugal, verificam-se persistências já sem sentido e conservadoramente recuperadas, desde os exames e provas nacionais e de aferição aos plenipotenciários diretores.

A organização da escolaridade em ciclos, nos doze anos em que é obrigatória, é uma das questões estruturantes, a par de outras também relevantes, que teimam em escapar ao escrutínio. O quotidiano docente imerso em tarefas burocráticas, quase sempre inúteis, retira tempo ao questionamento crítico, expectável num dos maiores setores profissionais, que não tem sido convocado nem implicado sobre como se aprende e como se ensina em Portugal.

A pergunta que se levanta é saber se os primeiros nove anos de escolaridade devem ou não estar segmentados em três ciclos, com transições marcadas e abruptas, sobretudo na passagem do primeiro para o segundo. Neste caso, os alunos passam da monodocência, que já não o é completamente, para a pluridocência, resultante da contaminação da organização do ensino secundário, influenciado, ele próprio, pela organização académica dos percursos educativos, já sem equivalente no modelo de acesso ao ensino superior e que contamina também a educação pré-escolar.

Numa abordagem panorâmica, e necessariamente incompleta, referem-se dois sistemas educativos, o francês e o finlandês. Um por ter servido tradicionalmente de inspiração ao sistema educativo português, de que são exemplo os liceus. Outro por ter contextos sociais, políticos, económicos e culturais que permitem avaliar e adequar o sistema educativo sempre que é considerado necessário, tendo em vista os desafios de cidadania e civilizacionais que as gerações do futuro terão de enfrentar.

No caso francês, a necessidade de reformar a escola laica, pública e universal, está relacionada com os elevados níveis de abandono e de insucesso escolar, associados à reprodução social. Em França, o sistema educativo integra as crianças a partir dos dois anos de idade, na escola maternal, que vai até aos 5 anos e que segundo a CITEi, corresponde ao primeiro ciclo. A escola elementar, ou primária, vai desde os seis anos até aos dez, em regime de monodocência com coadjuvações. Os quatro últimos anos do ensino básico, dos onze aos catorze, designam-se por “collége”. Dos 15 aos 17 ou 18, é o ensino médio, o “lycée”, após o que se realizam vários exames nacionais. Um tronco comum entre os vários percursos permite a mobilidade aos estudantes.

No caso finlandês, a centralidade da educação acompanha a formação do país. Desde logo, pelas escolas de proximidade e com grande ligação à comunidade e à família, visível na rede escolar pensada em função do território e não tanto da demografia. A escolaridade obrigatória é de nove anos, mas a conclusão do ensino secundário é elevada devido à obrigatoriedade de certificado para o ingresso no mundo laboral. O jardim de infância, dos dois anos aos seis, é universal, gratuito e público. Os edifícios escolares integram os nove anos de escolaridade, sendo que do primeiro ano ao sexto vigora a monodocência com coadjuvação. Só há avaliação quantitativa no final do nono ano e tem em vista o ingresso na escola secundária.

No momento atual, Portugal apresenta-se como o único país com um primeiro ciclo curto e um segundo aos 10 e 11 anos de idade. Este ciclo, criado em 1967 como preparatório, surge no âmbito de uma escolaridade de 6 anos difícil de concretizar na época. A discussão sobre a sua perda de identidade surge em 1987, no quadro do debate da Lei da Bases do Sistema Educativo [LBSE]. A proposta de criar um único ciclo de 6 anos esbarra, porém, na oposição dos professores e professoras e está relacionada com a desvalorização social e profissional do ensino primário, com a formação inicial de professores, as habilitações para a docência e com as tipologias do edificado escolar.

Mais recentemente, em 2009, o tema volta a ser discutido e Isabel Alarcão (CNE: 2009) propõe uma escolarização sequencial, articulada no plano normativo, organizacional, curricular e pedagógico e sem transições bruscas entre ciclos. A proposta é de um ciclo de seis anos, com 5 em monodocência e um 6º em equipa de 4 professores coadujuvados por professores especialistas que completam o currículo. Esta proposta implica a combinação de 3 dimensões: a escolaridade obrigatória de 12 anos, a pluralidade de edifícios escolares e a formação inicial de professores.

De acordo com Manuel Sarmento (CNE: 2009), a estrutura “agrupamentos” tem vindo a descaraterizar a monodocência devido à tendência para a disciplinarização, ou licealização, como diz o autor, decorrente da organização dos tempos escolares, da uniformização do trabalho pedagógico e, sobretudo, da generalização da avaliação quantitativa, associada a plataformas eletrónicas para a recolha exaustiva de dados e para controlo do trabalho pedagógico, chegando a afetar a educação pré-escolar, que deveria ser exclusivamente lúdica.

Uma outra particularidade portuguesa é o facto de os dois primeiros anos de vida de uma criança estarem remetidos para os cuidados prestados pelo setor social privado, não estando integrados no sistema educativo.

Nos últimos anos ocorreram mudanças significativas para o processo ensino-aprendizagem, de que são exemplo os Decretos-Lei n.º 54 e n.º 55 de 2018, que afetam transversalmente todos os níveis de ensino, configurando alterações de pendor reformista. No entanto escamoteiam a necessidade de proceder a alterações estruturantes, desde a organização dos ciclos à estrutura do ensino secundário e acesso ao ensino superior, passando pelas tensões criadas pela justaposição do articulado normativo ou pelas orientações vocacionais e profissionais orientadas para a suposta “empregabilidade”, com efeitos visíveis na fraca procura dos cursos de formação de professores.

Na Europa, mais de 10 países têm um percurso único de nove anos com uma transição gradual da monodocência, ora com coadjuvação ora com professores de determinadas áreas, ou ambos.

Em Portugal, verificam-se persistências já sem sentido e conservadoramente recuperadas, desde os exames e provas nacionais e de aferição aos plenipotenciários diretores, sem que, desde a aprovação da LBSE, tenha havido um amplo debate sobre o sistema educativo, a não ser a propósito dos vinte anos desta lei, mas ainda assim, circunscrito e sem ter chegado às escolas e a quem nelas trabalha.

O desafio é o de encontrar um caminho próprio, questionando e acomodando a multiplicidade de tipologias de estabelecimentos, reivindicando a prometida autonomia e assumindo a relevância dos primeiros doze anos da vida, ou seja, da infância, na formação dos cidadãos e cidadãs. Tal implica valorizar os primeiros anos de escolaridade, em particular os primeiros seis, como um todo articulado e sem sobressaltos.

A escolaridade obrigatória de doze anos como um fim em si mesma e a infância como uma etapa fundamental da vida, bem todas as todas as outras questões estruturantes, exigem uma visão holística, integrada, necessariamente complexa e multidimensional e associada ao debate amplo, participado e imprescindível.

Notas:

iCITE: Classificação Internacional de Tipo de Educação, da UNESCO.

Para saber mais:

- Programa Eurydice (https://eacea.ec.europa.eu/national-policies/eurydice/national-description_en)

- A Estrutura dos Sistemas Educativos Europeus (https://www.dgeec.mec.pt/np4/%7B$clientServletPath%7D/?newsId=1101&fileName=ECAL19001PTN.pt_estrutura_dos_sistemas_e.pdf)

- Conselho Nacional da Educação (2009): “A Educação das Crianças dos o aos 12 anos”

Artigo publicado originalmente no jornal "Escola e Informação'', do SPGL, mês de abril de 2022

 

Sobre o/a autor(a)

Professora de História e Sociologia da Educação. Dirigente do Bloco de Esquerda
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