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Penas, prisões e responsabilidade

Portugal tem uma cultura de encarceramento, perfilhada nos tribunais, que atira para a prisão milhares de pessoas no pressuposto errado de que esse é o caminho da sua redenção.

O sistema prisional português merece ser um foco prioritário de atenção social e política. Mais que tudo, porque, na sua estrutura e no seu funcionamento, ele é um teste à efetividade do Estado de Direito Democrático.

Portugal tem uma cultura de encarceramento, perfilhada nos tribunais, que atira para a prisão milhares de pessoas no pressuposto errado de que esse é o caminho da sua redenção. As distorções criadas por essa cultura instalada são evidentes: temos mais gente presa por condução sem carta (7.8%) do que por homicídio (7.6%). Por outro lado, Portugal é o segundo país europeu – só ultrapassado pela Moldávia – com maior duração média das penas de prisão (em média dois anos e meio).

Este sobre-encarceramento tem um outro lado: a subalternização das penas alternativas à pena de prisão. O caminho encetado há algumas décadas de valorização das penas domiciliárias e das penas de serviço à comunidade foi descontinuado e só razões basicamente estatísticas – redução da sobrelotação explosiva das prisões – fez com que, recentemente, se tivesse dado algum impulso ao recurso a pulseiras eletrónicas. E, no entanto, todos os estudos internacionais mostram que, lá onde isso não comporta riscos (violência doméstica, por exemplo), o cumprimento de pena fora da prisão tem uma capacidade ressocializadora muito superior.

E sobre isto há o resto que é um sistema de armazenagem de pessoas sem as dotar de horizontes alternativos para as suas vidas. A reinserção social tornou-se uma burocracia feita de relatórios “chapa cinco”, elaborados por profissionais cujas carreiras e cuja função são desvalorizadas pelo Estado, desmotivando-os de serem pivôs da inclusão social dos reclusos.

E, mais grave que tudo, a prisão em Portugal é, ela própria, a negação de uma reinserção alicerçada no reconhecimento do primado da lei. O que o recluso vive na prisão não é a aplicação da lei, mas antes o seu incumprimento pelo Estado. O Código de Execução de Penas é letra morta no quotidiano das prisões, com a regra sobre celas individuais a ser uma miragem, com o direito de defesa jurídica a ser um conto de fadas, com o direito a um rendimento mínimo gerido com autonomia pelos reclusos a ser fantasia, com o direito de remuneração justa pelo trabalho a ser lirismo, com o direito a saídas jurisdicionais a ser refém do arbítrio de quem decide.

Sem romantismos, mas com toda a responsabilidade, é mais que tempo de o poder político mudar a fundo a execução de penas em Portugal. Este é um combate essencial da democracia, contra a cultura do rancor vingativo da extrema direita e contra o desinvestimento e a lassidão que nos conduziram ao ponto em que estamos.


Artigo publicado no diário "As Beiras", 9 de março de 2021.

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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