A pegada do ano velho não aponta o melhor caminho para o novo ano

porCarlos Vieira

15 de janeiro 2023 - 11:40
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O centro político enreda-se com a direita neste sistema rotativista que promove o compadrio e a corrupção e, assim, vai abrindo espaço ao populismo da extrema-direita. Podiam aprender com o que se passa no Brasil.

O navio comandado por António Costa entra na rebentação do novo ano com rombos sofridos não por qualquer bombardeamento da direita (cuja armada parece tão desarmada como o atarantado almirante que a comanda), ou por ter encalhado nos “escolhos” da contestação sindical, ou nas embarcações mais pequenas à sua esquerda que abalroou apesar de lhe terem servido de rebocadores; mete água devido aos “tiros nos pés” da sua própria tripulação.

Onze ministros e secretários de Estado remodelados em nove meses é a prova de que a maioria absoluta não assegura estabilidade, antes provoca a arrogância absoluta que conduziu ao desgaste do governo. De entre os sucessivos casos, destaca-se a escolha para secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, de Miguel Alves, que foi presidente da Câmara Municipal de Caminha, em cujas funções autorizou o pagamento de 300 mil euros de rendas de um pavilhão “transfronteiriço” que nem sequer tinha sido começado a construir, a um mais do que evidente “empresário” charlatão, alegadamente para um “centro tecnológico”. Mas não foi por ser otário que este braço direito do primeiro ministro foi decepado do governo, mas sim por ter sido apanhado na Operação Teia, acusado de prevaricação por integrar uma rede de tráfico de influências para adjudicações por municípios do Norte que beneficiariam a empresa da mulher de um outro autarca do PS, de Santo Tirso. O que nos faz recordar a Operação Éter que também constituiu como arguidos um empresário e um autarca de Viseu, desta feita do PSD.

Seguiu-se o caso de Alexandra Reis (AR), convidada pelo ministro das Finanças para secretária de estado do Tesouro, depois de ter sido despedida da TAP com uma “indemnização” de 500 mil € líquidos, que considerou ter sido um terço da importancia a que tinha direito, de 1.479.250 €, por já ter completado metade do mandato e pela cessação do contrato de trabalho sem termo, como directora, antes de ir para administradora executiva. A TAP comunicou à CMVM a rescisão de AR a pedido desta, e mais tarde alterou a versão para “rescisão por mútuo acordo”, o que não está previsto no Estatuto de Gestor P úblico. Sabe-se que AR teve parte activa no despedimento de cerca de 3.000 trabalhadores da TAP, com cortes nas indemnizações (50% para os pilotos e de 25% nas das restantes tripulações), com negociações duras e inflexíveis com os seus sindicatos e advogados. Ainda por cima, trata-se de uma empresa intervencionada pelo Estado, em mais de 90% do capital, que lhe injectou 3.200 milhões de euros, dinheiro dos impostos e das contribuições dos portugueses, o que exigiria controlo apertado.

Aguarda-se os esclarecimentos políticos, administrativos e jurídicos, nomeadamente os que serão apurados pela Comissão de Inquérito Parlamentar proposta pelo Bloco de Esquerda. Mas fica por demais evidente a inadmissível falta de escrutínio dos detentores de cargos públicos, como neste caso de nomeação de AR por Pedro Nuno Santos, para a presidência da NAV, outra empresa pública, seis semanas depois de ter saído da TAP. O mesmo se aplica ao ministro das Finanças, Fernando Medina, que a nomeou para secretária de Estado do Tesouro.

Outra das conclusões é a confirmação de que em Portugal se consolida uma casta de privilegiados, uma nova aristocracia, a dos administradores e gestores de bancos e restante sector financeiro, da grande distribuição (hipermercados) e dos oligarcas de sectores estratégicos da economia, como o da energia. Esta “aristocracia”, os velhos e novos donos do grande capital, incumbem seus fieis baronetes e escudeiros de entrar e sair (bem pagos) pela porta giratória dos governos. Os CEO (directores executivos) portugueses, em 2021, ganharam 32 vezes mais, em média, do que os seus trabalhdores. O líder da Jerónimo Martins, dona do Pingo Doce, em 2021 recebeu três milhões de euros, 263 vezes mais do que a média dos funcionários, além de 9,3 milhões de contribuição extraordinária para o pleno de pensões. A CEO da SONAE, dona do Continente, recebeu 1,6 milhões de euros, 77 vezes mais do que a média dos seus trabalhadores. O CEO da Mota-Engil, auferiu 73,3 vezes mais do que a média dos salários da empresa. Portugal é um dos países onde a distribuição de rendimentos é mais desigual.

Todos estes escândalos, de tão recorrentes, talvez não passassem da espuma dos dias se não fosse o facto de nós, comuns cidadãos, estarmos a ir na enxurrada do tsunami inflaccionário provocado pelas ondas de choque das bombas na Ucrânia (que parece que ninguém quer parar, nem o invasor “czar” Putin, nem Zelensky, nem a NATO, o braço armado dos vendedores de armas, EUA e UE). Isto num país onde cada vez há mais jovens licenciados que se vêem obrigados a procurar um segundo emprego para conseguir pagar a habitação e a comida no prato; um país com 2,3 milhões de portugueses em situação de pobreza ou exclusão social. Destes, quase 540 mil são pobres apesar de empregados; com 22,3% dos reformados e mais de 60% dos desempregados em risco de pobreza e exclusão social (pior, na UE, só a Roménia), segundo dados de 2021 do Eurostat. Entrementes, verifica-se a desvalorização dos salários e pensões, num regresso à austeridade que acentua de forma dramática as desigualdades sociais que persistem no nosso país, onde os salários reais irão, este ano, recuar ao nível de 2014.

A culminar a desorientação do governo surgiu a demissão da secretária de Estado da Agricultura, um dia depois de ter tomado posse, por suspeição de mau uso de dinheiros públicos e eventual corrupção.

Para rematar (será que é desta?...), acaba de vir a lume o caso da ex-secretária de Estado do Turismo, Rita Marques, que menos de um ano depois de saír do governo entrou como administradora de uma empresa proprietária de vários hotéis a quem tinha atribuído o estatuto definitivo de utilidade turística, violando a lei que inibe os titulares de cargos políticos de exercer funções em empresas privadas, por um período de três anos após a cessação do mandato.

O centro político enreda-se com a direita neste sistema rotativista que promove o compadrio e a corrupção e, assim, vai abrindo espaço ao populismo da extrema-direita. Podiam aprender com o que se passa no Brasil. Esquerda socialista, precisa-se!

Carlos Vieira
Sobre o/a autor(a)

Carlos Vieira

Ativista associativo na defesa dos Direitos Humanos. Militante do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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