Justiça seja feita ao Partido Socialista: a acusação, que lhe foi endereçada pelo Governo, de estar a “contragovernar” não podia ser mais injusta. Para tal, seria preciso um rumo, uma alternativa, uma vontade de oposição clara ao rumo liberal deste governo. E, da parte do PS, não vemos nada disso.
O PS de Pedro Nuno Santos parece antes ter adotado a tática de “entrar de costas para parecer que está de saída”. Em breve, fará um ano a eleição interna no Partido Socialista que levou Pedro Nuno à liderança. Nessa campanha sem debate, baseada na mobilização do aparelho, em que o atual líder fez questão de se rodear das figuras mais à direita do partido, a grande farpa lançada contra José Luís Carneiro pelo atual secretário-geral qual foi? A de que este admitia viabilizar o Orçamento de Estado de um futuro governo minoritário de direita. Volvido menos de um ano, parece que afinal Carneiro ganhou, ainda que em pele de lobo. Ou não é assim?
Em março, logo na noite em que a AD venceu (por pouco!) as eleições, Pedro Nuno asseverava firme: “Não somos nós que vamos suportar um governo da AD.” Já dias depois, após reunião da direção socialista, a fasquia baixava – “praticamente impossível”, era agora este o grau de probabilidade de viabilizar o orçamento. Já em maio, passou ao “muito difícil” e ao “terá que ser avaliado”. Agora, em entrevista à RTP, Pedro Nuno Santos já admite viabilizar o orçamento se o PS “não for ignorado pelo Governo”. Quem beneficia desta transigência é a extrema-direita, sobre quem deixa de pesar o ónus da estabilidade de uma governo de direita, que até já com ela converge em políticas de migração e nos artifícios da anticorrupção.
Porém, não se tratam apenas de declarações. A (in)capacidade do PS em manter alguma firmeza perante o Governo ficou logo patente no episódio da votação da Mesa da Assembleia da República. Quando o Chega roeu a corda, já depois de ter negociado com a AD, o PS, mesmo tendo o candidato mais votado para Presidente da Mesa, correu a salvar Montenegro, aceitando a presidência do PSD sem sequer exigir que este partido recusasse uma vice-presidência ao Chega. A extrema-direita ganhou um duplo bónus com a genuflexão socialista: um fascista na Mesa da AR e a desresponsabilização pelo impasse causado. Ventura agradece.
Um rumo de continuidade
Podemos, com otimismo, esperar que estas sejam apenas adaptações táticas para, nos momentos decisivos, Pedro Nuno se elevar como oposição feroz às direitas? Parece pouco provável. Porque, na substância, vemos que não há um programa, um conjunto de ideias, uma mundividência que o PS tenha para opor à AD. Terá certamente diferenças na modelação de políticas, nas personalidades a nomear para altos cargos da administração pública, nos ritmos de entrega do SNS ao privado. Mas nada de substancial – como bem assinalou a Mariana Mortágua, a reforma da AD na saúde é a continuidade da política do Governo anterior.
E não é só na saúde. Vimos nas europeias como, no essencial – a posição face ao pacto das migrações, às novas regras austeritárias da UE, à corrida armamentista – PS e AD estavam de acordo. Marta Temido bem acusou a direita europeia de negociar com a extrema-direita, mas o que vimos foi o arranjo entre socialistas, liberais e centro-direita para manter von der Leyen na Comissão, colocando Costa no Conselho com entusiasta apoio de Montenegro. Mas também por cá: a lista conjunta aprovada pelo PSD, PS e Chega para o Conselho de Estado foi nada menos do que um escândalo.
No terreno local observam-se sinais do mesmo. Na maior câmara do país, a oposição a Moedas está a cargo do Bloco e das mobilizações dos trabalhadores municipais e movimentos de cidadãos – o PS assiste passivo. Onde o PS tem responsabilidade, como em Almada, vemos a conivência com despejos sem alternativa, no Bairro da Penajóia. Quando não são diretamente executivos socialistas a despejar pessoas e a demolir as suas casas sem aviso nem alternativa, como em Loures.
Há, portanto, uma coerência. A ruptura e a relocalização do PS à esquerda, cuja aura Pedro Nuno Santos carregava, ainda não se viu. Há uma continuidade do pragmatismo centrista de Costa. O plano parece ser esperar que o ciclo da direita se esgote, que a AD tropece nos própios pés e que isso abra caminho a um regresso do PS ao poder (pressionando então a esquerda para apoiar um governo seu, claro). Ideologia à parte, há aqui um erro de cálculo: na era da irrupção da extrema-direita, nada indica que esse plano funcione. Sem polarização à esquerda, o risco é a situação virar mais à direita. Como Pedro Nuno Santos antes lembrava, o beneficiário da capitulação socialista será o Chega.
E à esquerda?
Nada disto é positivo, desenganem-se os sectários. Num momento em que o país (e a Europa e o mundo!) vira à direita e à extrema-direita, ter um PS firme na oposição, dando voz a alternativas de esquerda, seria importante – mesmo sabendo que seria sempre insuficiente e que, por isso, é essencial reforçar a esquerda anticapitalista. Conclusão: há que exigir ao PS que mude de rumo. Não é a esquerda que deve decidir se converge com o PS, este é que tem de se decidir entre o governo e a esquerda. Em cima do muro está o fio da navalha.
Num momento em que se fala – e bem – de unidade de esquerda, a política do PS e face a ele não é uma questão menor para quem é verdadeiramente socialista. Há duas posturas, que tiveram eco nas últimas semanas, que fazem as delícias do PS, sobretudo da sua ala mais moderada. Uma é o sectarismo – assente num pudor em discutir convergências ou num “radicalismo” estéril de treinadores de bancada –, que desresponsabiliza o PS e não dialoga com quem o segue. Outra é a confusão voluntarista entre unidade de esquerda para combater a direita e o neofascismo e promessas de coligações autárquicas sem critério nem programa (que, por sua vez, alimenta o sectarismo). Mesmo a possibilidade destas últimas, como assinalou a coordenadora do Bloco, “depende sobretudo de programas, mais do que protagonistas”.
É mesmo assim: sem um programa de ruptura com o neoliberalismo, que mude, realmente, a vida de milhares de pessoas, não é possível mobilizar amplas camadas populares para derrotar a direita e o neofascismo, como nos mostram os exemplos internacionais. Pior: sem isso, convergências “à esquerda” serão apenas o seguro de vida do centrismo, cujo preço será pago pela esquerda combativa. A ideia de unidade de esquerda não sobreviverá a essa confusão – e a própria esquerda poderá sair muito mal.
A disputa autárquica de 2025 será muito importante, sobretudo na capital – os resultados e as convergências que aí sucedam terão sempre leitura nacional. Mas esse terreno é meramente tático face a uma outra necessidade estratégica: a de criar uma polarização à esquerda que faça o debate público girar em torno dos diretos sociais, da melhoria dos salários, de casas para habitar e de um planeta para viver. Uma polarização que responda ao racismo com a igualdade, ao medo com a esperança. Um desequilíbrio do jogo político para o lado das forças populares que abra portas ao contra-ataque da esquerda – nas urnas, mas sobretudo nas ruas. O PS deve ser desafiado a entrar neste terreno, a sair de cima do muro. Mas ele só pode ser arrastado para este caminho, não o irá liderar. A responsabilidade está mais à esquerda. Talvez fosse altura de uma conversa (anunciada ou discreta) a três.
