Paz

porShahd Wadi

06 de junho 2024 - 14:25
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E o que as mulheres têm a ver com esta palavra? A Paz habitou apenas nas mãos de homens durante um aperto que dividiu a Palestina em ilhas … mas continuam a chamá-la Palestina, ilha prisão, ilha checkpoint, ilha muro, ilha colonato, ilha apartheid, ilha sem respiração, ilha inferno: Gaza.

Procuro a palavra algures no mapa, mas a minha língua no seu estado materno falha em capturar as suas letras.

Escorrega das minhas mãos e das do mundo como se fosse um sabão de azeite de Nablus.

Paz. o “P” não existe na minha língua pátria, agora nem sequer a cabeça que ontem foi decapitada em Rafah.

Paz. Procuro de novo soletrar este termo, não me interessa o maiúsculo, mas a minha terra palestiniana nem sequer existe em minúsculo.

E o que as mulheres têm a ver com esta palavra? A Paz habitou apenas nas mãos de homens durante um aperto que dividiu a Palestina em ilhas: “ilha A” quase ocupada, “ilha B” ocupada, “ilha C” completamente ocupada, mas continuam a chama-lá Palestina, ilha prisão, ilha checkpoint, ilha muro, ilha colonato, ilha apartheid, ilha sem respiração, ilha inferno: Gaza.

Nesta ilha-morte desvive cerca de 63 mulheres por dia, estas sim ficam em paz.

Morreu uma enquanto estava eu aqui a aclarar a voz para fazer cálculos. Não contei aquelas que ficaram debaixo dos escombros, desaparecidas em matemática. E não sei fazer as contas dos seus órgãos roubados pelo exército israelita, alguns estavam danificados não foram aproveitados nem sequer para dar vida ao seu ocupante. Deveria somar também os cadáveres daquelas que foram comidas pelos animais, mas estas serviram. Os animais foram postos nos pratos dos filhos delas para não morrerem à fome.

Paz?

Procuro colar a paz à esperança, mas a minha cola é agora cinza.

O outro dia vi uma mulher palestiniana a procurar a paz comigo, mas fugiu-lhe porta fora ao ser expulsa da sua casa em Hawara, em Naqab, no Vale Jordão, em Msafer Yatta e sobretudo quando queimaram a sua décima tenda em Gaza. Mais um caminho. Terá a minha avó também procurado a paz depois de catástrofe Nakba em 1948? Ou terá morrido dizendo: exilio eterno. Sem-paz perpétua.

Ouvi dizer que enquanto uma palestiniana estava a apanhar o que restava de paz neste mundo, foi aprisionada. O corpo dela ficou demasiado nu, as mãos que o ocuparam sacudiram o pouco paz que tinha, mesmo assim, ela disse que não precisa de salvação, mas de viver livre em paz.

A minha irmã, que nunca me fui permitido conhecer, procurou a paz no que restava de Gaza, mas só encontrou um pano de tenda que utilizou como penso higiénico, e ao lado dele estava lá o mar ainda, mas sem o azul.

Na alma dela, já não cabiam as palavras sobre a liberdade, paz e justiça, acolheu no lugar delas uma selvajaria colonial única e sem precedentes. O seu ser palestiniano sussurrou diretamente ao ouvido de cada uma de nós: o vosso planeta já não é um lugar seguro.

Desde antes de nascer que vejo a mesma palavra, mas só agora ganhou forma: genocídio. Forma que afoga a paz no meu corpo, no teu corpo e em qualquer possibilidade humana. Um espelho, cada dia mais limpo, refletindo a imundice do mundo inteiro.

Mesmo assim, uma mulher palestiniana foi ainda capaz de ensinar a vida procurando a paz ao citar um poema: “Escreverei uma frase mais preciosa do que os mártires e os beijos: Palestiniana, era. E ainda é.” Palestiniana sou e sempre serei. Aprisionada, barrada num checkpoint, cercada por um muro de separação, dissolvida num sistema de apartheid, opressão e ocupação. Sob os bombardeamentos numa tenda em chamas, deu à luz sem analgésicos a sua filha, antes de morrer entregou-lhe a arma, o canto o destino e o nome: Salam, Paz. Um dia esta filha crescerá.

Artigo publicado em Gerador a 4 de junho de 2024

Este texto foi lido durante a conversa “Na Europa, mulheres pela paz” com Catarina Martins, Pilar del Rio e Teresa Coutinho, que teve lugar no dia 28 de maio de 2024.

Shahd Wadi
Sobre o/a autor(a)

Shahd Wadi

Palestiniana. Doutorada em Estudos Feministas pela Universidade de Coimbra, a sua dissertação serviu de base o livro “Corpos na trouxa: histórias-artísticas-de-vida de mulheres palestinianas no exílio” (2017). Obteve o grau de mestre na mesma área pela mesma universidade com uma tese intitulada “Feminismos de corpos ocupados: as mulheres palestinianas entre duas resistências” (2010)
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