A Paz foi sempre mais que o aço

porCatarina Martins

09 de maio 2025 - 11:20
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Não aceitar que ao sonho dos avós se seguirá inevitavelmente o pesadelo dos netos é o imperativo destes tempos.

Ter aço e carvão em comum foi instrumento de Paz. É assim que se escreve a história europeia no pós guerra. E se a história é sempre mais complexa e contraditória do que a celebração que vamos fazendo, assinalá-la ajuda a pensar o tempo que vivemos e, sobretudo, o futuro que as nossas decisões presentes vão construindo.

Não se compreenderá a Declaração de Schuman sem abordar o papel dos Estados Unidos, a sua aliança com o Reino Unido e a disputa com a União Soviética, nesta proposta da França à Alemanha para estabelecer confiança entre inimigos de duas guerras mundiais. Esse é um caminho que decidi deixar de fora destas linhas. Estes dias impelem-me a outro caminho.

A guerra que tinha derrotado o nazi-fascismo havia terminado apenas 5 anos antes deste início do que viria a ser a União Europeia. O fim da guerra seria marcado, globalmente, pela criação das Nações Unidas. A devastação da guerra tinha tornado absolutamente necessário o papel dos Estados na reconstrução das economias. Nesta parte do globo, a urgência popular desse momento impôs ainda a construção do Estado Social. Seguirei por aqui.

A Carta das Nações Unidas estabeleceu um quadro para relações multilaterais, a regulação das relações entre os Estados pelo direito internacional e o primado da resolução pacífica  dos conflitos. Dependerá sempre da vontade real de concertação entre as Nações, mas é caminho aberto. E é neste quadro que a proposta de uma Comunidade Europeia do Carvão e do Aço pôde ser feita. Na Declaração de 1950, a Alta Autoridade proposta já incluía a representação da ONU. O mundo definia, todo ele, novas condições de confiança.

Nessas condições, os Estados podiam vincular-se a uma estratégia de produção e mercado comum para as matérias primas da guerra porque tinham poder real sobre isso mesmo. A privatização dos setores estratégicos e a hiper liberalização, como sabemos, haveria de alterar radicalmente esse quadro.

Ao mesmo tempo, os países europeus, todos eles, alimentavam a esperança dos povos na melhoria das condições de vida. Uma esperança alicerçada em passos concretos. O espírito de 45, na chamada Europa Ocidental, foi o da construção do Estado Social e dos direitos do trabalho. Viver melhor. A Paz era bem mais que o silêncio das armas e não podia ser menos do que justiça, democracia e solidariedade.

Hoje, assinalando os 75 anos da Declaração de Schuman, o desafio é olhar para todas essas condições e pensar o que nos ensinam sobre o abismo destes dias. Até porque há quem acredite que um programa comum de rearmamento europeu possa relançar a União Europeia. Será assim? Sem considerações sobre as repetições tão previsíveis quanto impossíveis da História, onde estamos hoje?

Num mundo em que nunca se produziu tanto por minuto, em que regridem direitos do trabalho e em que encolhe o Estado Social. Trabalha-se a um ritmo alucinante, sem perspectivas de melhoria de vida, e ouve-se quotidianamente que não há recursos para a saúde, educação ou habitação públicas. A confiança dos povos europeus na democracia e num projeto comum de Paz esboroa-se neste século já com mais de duas décadas de enorme inovação sem progresso social.

A credibilidade de uma ação dos Estados sobre a indústria da defesa que seja consequente e tenha raízes democráticas também está minada. Com a nova ordem de tecno oligarcas a determinar o campo da guerra - dos drones assassinos às comunicações e propaganda - os Estados podem propor-se a alimentar a indústria de armamento. Mas só podem prometer mais armas; que irão matar onde for.

Finalmente, as condições de confiança entre as nações estão comprometidas e não apenas por Trump e os seus apetites por Gaza, pelas terras raras da Ucrânia, a Gronelândia, o Canal do Panamá e o mais que lhe encher o olho. Ou por Putin e a invasão em larga escala da Ucrânia, fundada num regresso a uma retórica da Grande Rússia Czarista. É também pela União Europeia e a sua cumplicidade com o genocida Netanyahu. E aqui talvez esteja o maior golpe: o espaço que só pode existir a partir do fundamento do direito internacional está a negá-lo de forma obscena para todo o mundo ver. Essa perda de credibilidade tem um peso externo e interno cujo alcance ainda não é completamente claro.

Volto à Declaração de Schuman: «A paz mundial não poderá ser salvaguardada sem esforços criativos que estejam à altura dos perigos que a ameaçam.» Um imperativo contra a desistência. A ideia, repetida vezes demais, de que a Paz foi um sonho e a Europa acorda agora da sua ingenuidade deve ser combatida com todas as forças. Não aceitar que ao sonho dos avós se seguirá inevitavelmente o pesadelo dos netos é o imperativo destes tempos.

A Paz é sempre um sonho. Um sonho que se persegue e protege. Um projeto que, como a Europa de Schuman, “não se construirá de uma só vez, nem de acordo com um plano único.” Também não será filho das armas, como não foi então, mas de novos mecanismos de confiança e solidariedade. Estejamos, pois, à altura dos perigos que nos ameaçam. Sejamos criativos.

Catarina Martins
Sobre o/a autor(a)

Catarina Martins

Eurodeputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Atriz
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