Está aqui

Para quê esta guerra do Governo contra os trabalhadores independentes?

O Governo parece disposto a usar todo o arsenal político e jurídico de que dispõe para travar um pequeno aumento dos apoios aos trabalhadores independentes que ficaram sem rendimentos. O que está, então, em causa em todo este processo?

O Governo parece disposto a usar todo o arsenal político e jurídico de que dispõe para travar um pequeno aumento dos apoios aos trabalhadores independentes que ficaram sem rendimentos. A questão formal invocada extravasa o caso concreto e tem a ver com a escolha de António Costa de governar em minoria sem acordos escritos e estáveis para a legislatura. O problema substancial é que os apoios inscritos no Orçamento para 2021 não servem – e toda a gente já percebeu, incluindo o Presidente da República. O que está, então, em causa em todo este processo?

1. O apoio desenhado para 2021 não serve e o próprio Governo já o substituiu pelo apoio do ano passado

O problema de fundo é este. No debate orçamental, o governo quis passar a ideia de que o novo “Apoio Extraordinário ao Rendimento do Trabalhador” (AERT) era uma “nova prestação social”, capaz de cobrir todas as situações de desproteção social, com uma abrangência inédita. António Costa atravessou-se pela proposta do Governo e fez dela a bandeira social do Orçamento. Mas quem na altura se dedicou a examinar pacientemente os detalhes da proposta, a condição de recursos, o processo de requerimento, a complexa fórmula de cálculo do valor da prestação, percebeu de imediato que a tal “nova prestação social” para 2021, anunciada com pompa, era afinal um apoio pior do que aqueles que vigoraram em 2020. No debate de especialidade do Orçamento do Estado, chegou a votar-se a continuidade, para 2021, dos apoios à redução de atividade dos trabalhadores independentes que houve em 2020. A proposta foi chumbada.

Só que o problema da política de anúncios é que tem sempre de passar pelo teste da realidade. Em meados de janeiro de 2021, o Governo anunciou que afinal, ao arrepio das declarações tonitruantes que havia feito, ia mesmo ter de repescar os apoios aos trabalhadores independentes de 2020… Não foram precisos mais de 15 dias de Orçamento em vigor para que a inadequação e insuficiência do novo apoio fosse reconhecida na prática. A tal “nova prestação” não servia. Os dados aliás comprovam-no: das 190 mil pessoas que em fevereiro estavam abrangidas pelos apoios extraordinários, 68% estão nos apoios repescados de 2020 (cerca de 100 mil trabalhadores independentes e 29 mil sócios gerentes) e apenas 32% na “nova prestação social” inscrita no orçamento de 2021 (o AERT). Lamentavelmente, o Governo quis ocultar estes dados ao Parlamento, mesmo que tenham sido formalmente requeridos por mais do que uma vez em audição com a Ministra do Trabalho.

2. Os apoios repescados foram distorcidos e por isso têm valores muito baixos

Quando retomou os apoios de 2020 (cujo prolongamento para 2021 tinha chumbado, insista-se), o Governo mimetizou as regras de 2020, mas ao fazê-lo distorceu o próprio alcance e robustez desse apoio. Porquê? Porque quando foi criado, o apoio à redução de atividade tomava como referência os rendimentos dos trabalhadores “nos 12 meses anteriores”, isto é, 2019, antes da pandemia. Mas quando foi retomado, passou a considerar a média de rendimentos de 2020, ou seja, já com o efeito das perdas de rendimento desse ano. Assim, um apoio cujo objetivo seria proteger das perdas, passou a tomar como rendimentos de referência os de um ano que foi trágico. Por isso, uma grande parte dos trabalhadores passou a receber o valor mínimo, 219 euros por mês.

3. O impacto da proposta do Bloco

Foi isto que a proposta do Bloco, aprovada por todos os partidos no final de fevereiro (e cuja redação final foi fixada no início de março) pretendeu resolver, com uma alteração cirúrgica. A proposta nem sequer mexeu nos limites que o governo já havia definido: um mínimo de 219 euros mensais e um máximo de 658 euros mensais, que se mantêm. Mas para se calcular quanto recebem os trabalhadores dentro deste intervalo, seriam consideradas as perdas face ao rendimento médio mensal de 2019, e não de 2020.

Apesar de termos pedido os números ao Governo sobre qual o número de beneficiários e qual o valor médio de cada apoio, eles nunca nos foram remetidos. No entanto, foram enviados ao Grupo Parlamentar do Partido Socialista dados relevantes. Os deputados do PS foram informados que a aprovação desta proposta teria um impacto médio, por beneficiário, de cerca de 300 euros a mais no valor do apoio. Em termos mensais, seriam cerca de 38 milhões de euros. Isto revela sobretudo que os atuais apoios são baixíssimos. Ou seja, que há muita gente que está a ser atirada para o limiar mínimo, porque se está a calcular o que perdeu em 2021 face a 2020, ano em que já tinham estado sem trabalhar. É importante sublinhar que um apoio de 219 euros por mês corresponde a menos de metade do limiar de pobreza. A pequena alteração do Bloco que o Parlamento aprovou faz, assim, toda a diferença na vida de 130 mil pessoas que aguardam, desde meados de março, a promulgação do diploma.

4. A chantagem do Governo e a pressão sobre o Presidente

Desde então, isolado no Parlamento, o Governo iniciou uma campanha de pressão sobre o Presidente da República para que a alteração não fosse promulgada. Pareceres jurídicos, contactos, reuniões, tudo para impedir este pequeno aumento em apoios sociais provisórios, que servem para acudir a um momento excecional e têm um impacto residual no montante global do Orçamento.

O argumento do Governo é que o Parlamento não pode alterar o Orçamento de 2021. Mas trata-se, francamente, de um argumento retorcido e de uma má desculpa de mau pagador. Em primeiro lugar, porque estamos a falar de uma correção a um apoio que o Governo decidiu repescar e que não consta, ele próprio, do Orçamento, pelo que foi o próprio Governo o primeiro a reconhecer que era preciso criá-lo. Em segundo lugar, porque aquela alteração resulta de um processo legislativo (uma apreciação parlamentar a um decreto do Governo) em que o próprio PS apresentou propostas de alteração, pelo que o argumento de princípio segundo o qual não se pode mexer em decretos governamentais relativos às regras dos apoios é, no mínimo, muito frágil. Em terceiro lugar, parece um argumento meramente instrumental, para evitar esta alteração concreta no apoio dos trabalhadores independentes. Com esta manobra, o Governo cria também um problema ao Presidente, que tem sinalizado a insuficiência dos apoios e que sabe que uma parte significativa das verbas orçamentadas, designadamente para apoios extraordinários, nem sequer tem sido gasta.

5. Um apelo ao bom senso e ao sentido de justiça

Tentar transmutar esta pequena melhoria nos apoios sociais de quem está mais desprotegido numa pretensa batalha política e constitucional é um grande erro político, que ignora o contexto em que estamos. Se o problema fosse só de forma, o próprio Governo podia já, por sua iniciativa, ter corrigido as regras do apoio. Se não foi capaz de fazê-lo, deixe ao menos que o Parlamento faça o seu trabalho. Em vez de se dedicar a boicotar a medida, o Governo deveria empenhar-se em fazer chegar às pessoas o apoio de que elas precisam, nalguns casos desesperadamente, e usar as armas jurídicas e constitucionais ao seu dispor para ser um pouco mais exigente com os mais fortes, e não mais avaro com quem está sem nada. Oxalá o Presidente da República faça prevalecer, quanto antes, este critério de justiça social.

Artigo publicado em expresso.pt a 26 de março de 2021

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
Comentários (1)