Para além da emergência social

porAdelino Fortunato

06 de abril 2024 - 0:42
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A derrota da esquerda não é simplesmente uma derrota eleitoral, conjuntural, recuperável no curto prazo, mas sim uma confirmação da sua dificuldade em se bater por um projeto de sociedade alternativo para superar duradouramente os flagelos que o capitalismo impõe hoje à maioria da população mundial.

As eleições legislativas confirmaram os nossos piores receios, a direita globalmente considerada ganhou confortavelmente à custa de uma subida muito acentuada da extrema-direita. Este resultado comprova a mudança de ciclo político, que acompanha as tendências verificadas no plano europeu e mesmo internacional, traduzido por um reforço das ideias conservadoras e por uma evidente crise da esquerda conjuntamente considerada. Aliás, do meu ponto de vista, as duas coisas estão interligadas. Esta derrota da esquerda não é simplesmente uma derrota eleitoral, conjuntural, recuperável no curto prazo, mas sim uma confirmação da sua dificuldade em se bater por um projeto de sociedade alternativo para superar duradouramente os flagelos que o capitalismo impõe hoje à maioria da população mundial.

À esquerda, não se trata apenas da penetração das receitas neoliberais na prática política da social-democracia contemporânea (a governação do PS português nos últimos anos é uma fiel ilustração desta realidade), trata-se de algo mais profundo, envolvendo toda a esquerda: a dificuldade em ir para além das respostas de emergência social à crise do capitalismo. A este respeito diz Marina Garcés referindo-se às experiências da nova esquerda (agrupamentos à esquerda do PSOE) no Estado espanhol: “De alguma forma, a “nova política” que surgiu em Espanha nos últimos anos e que governa algumas vilas, cidades e territórios, apresenta-se também sob esta lógica – a sua razão de ser não é a transformação política (ou seja, o futuro), mas a emergência social”.

A queda do Muro de Berlim e o desmoronamento da União Soviética nos anos 80 consumaram um vazio ideológico que não dá sinais de se inverter. O designado “fim das grandes narrativas” acerca do sentido da evolução histórica da humanidade acabou por decretar a morte da ideia de futuro e de progresso, fazendo deles noções do passado. Não se trata apenas de uma reação político-ideológica à crise de ideias que dominaram o século XX, mas de uma forma de ver e sentir o mundo baseada num “não tempo” que privilegia sempre o imediato. A consequência mais discutível desta tendência é o solucionismo, isto é, a ideologia que legitima a abordagem de qualquer situação social complexa a partir de definições simples e soluções definitivas. Com este horizonte, a ação coletiva entende-se a partir da emergência como operação de salvamento, reparação ou resgate. A esquerda, também ela, está refém deste enquadramento e, por isso, fica-se pelo terreno das respostas da emergência social.

O preço que a esquerda paga por esta convergência é o de que as fronteiras entre as diferentes forças políticas de esquerda são menos nítidas do que foram no passado, uma vez que o desprezo pelos objetivos de longo prazo, pela definição estratégica e pelos projetos de sociedade alternativos acabou por as “social-democratizar” a todas. É verdade que subsiste o peso da memória na construção da identidade dos atuais partidos, que faz com que o PCP, por exemplo, nunca se vá conseguir descolar da sua matriz estalinista de sempre, ou que o PS esteja sempre associado a políticas de direita adotadas nos governos que liderou nas últimas décadas. Mas tudo isso pode esbater-se no contexto iminentemente defensivo criado pela vitória da direita e pela ascensão da extrema-direita, promovendo um clima propício para a capilaridade e para as transferências, normalmente favorecendo os grandes partidos ou os que carregam consigo a ideia de novidade (caso do Livre, por exemplo).

Os resultados eleitorais de 10 de março já evidenciam alguns destes sinais, mas isso pode tornar-se ainda mais notório na forma como as diferentes forças políticas estão a tratar a questão da liderança da esquerda no contexto da oposição ao futuro governo de direita, que se virá a formar. Aparentemente, todas dão mostras de quererem desempenhar um papel que tradicionalmente coube, indiscutivelmente, aos grandes partidos. Pedro Nuno Santos, mas também Rui Tavares e o Bloco de Esquerda desdobram-se em iniciativas que procuram tirar partido do clima de resistência que as circunstâncias parecem suscitar. Aliás, essa intenção, é também favorecida pela tónica dominante da emergência social que domina os programas dos partidos da esquerda e que torna verosímil a ideia de que qualquer um deles tem um papel a desempenhar e se pode aproximar dos outros sem ter de sacrificar o essencial dos seus princípios estratégicos.

Mas este processo será, certamente, transitório porque acabará por revelar que o nivelamento da esquerda pelo programa mínimo só favorecerá a parte da esquerda mais bem adaptada à gestão corrente do sistema capitalista e irá impulsionar posicionamentos de renovação programática que se apresentem com vertentes para além do programa de emergência social, hoje dominante. A lógica da emergência social cria a ilusão de que problemas como o da habitação, da precariedade, das desigualdades sociais, do acesso aos cuidados de saúde, da emergência climática e tantos outros são resolúveis no quadro do capitalismo. O que não é verdade. A grande incógnita é saber quando é que esse processo de renovação irá acontecer e qual a profundidade desse ajustamento de princípios e de objetivos. No tempo que vivemos tudo se tornou muito volátil e o que parecia impossível pode revelar-se realidade palpável.

Aguardemos com atenção redobrada o que se passará neste domínio.

Adelino Fortunato
Sobre o/a autor(a)

Adelino Fortunato

Economista e professor universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda.
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