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A outra Cristina
Cristina Tavares não é Cristina Ferreira. Não é da Malveira, mas de Santa Maria de Lamas. Não ganha 38 mil euros por mês, mas 600. Não começou o seu novo trabalho, mas foi vítima do segundo despedimento. Ambas têm um filho. O de Cristina Tavares tem síndrome de Asperger. Cristina Ferreira está em forma, Cristina Tavares emagreceu sete quilos por causa da perseguição dos patrões. A guerra de audiências das manhãs de Cristina Ferreira têm dado muito que falar. Da guerra movida contra Cristina Tavares e dos seus dias de sofrimento e humilhação, quanto temos falado?
Conheci pessoalmente Cristina Tavares no dia 1 de dezembro do ano passado, na sede do Sindicato dos Operários Corticeiros do Norte. Tinha acabado de receber a carta de suspensão da empresa onde trabalha desde 2009, a Fernando Couto Cortiças, SA. Cerca de um mês antes, a 28 de novembro passado, a Autoridade para as Condições de Trabalho condenou a empresa a pagar uma multa de 31 mil euros (que vão para o Estado) por assédio moral. Ontem, Cristina Tavares foi despedida pela segunda vez, em mais um episódio do processo de tortura física e psicológica de que está a ser vítima.
Em resumo, os acontecimentos. Em 2016 Cristina esteve de baixa para acompanhar o filho com deficiência, exercendo um direito que a lei lhe confere. Os patrões não gostaram e vingaram-se, inventando uma suposta “extinção do posto de trabalho” para correr com ela. Despediram-na no início de 2017. Cristina recorreu para o Tribunal, porque depende daquele salário para viver e para apoiar o filho. O Tribunal deu-lhe razão, condenou a empresa e obrigou a que a trabalhadora fosse reintegrada. Assim aconteceu. A empresa teve de cumprir a ordem judicial mas começou a tornar a vida de Cristina um inferno, com pormenores sórdidos de mesquinhez e desumanidade. Cristina passou a ter de usar uma farda diferente das colegas, por humilhação. Foi posta a fazer um trabalho improdutivo: a empilhar e a desempilhar numa palete os mesmos sacos com cinco mil rolhas, fazendo e desfazendo continuamente o mesmo trabalho. Foi impedida de utilizar a casa de banho comum e passou a ter um WC só para ela, com uma porta de vidro que a expunha aos colegas homens e que obrigou Cristina a levar de casa um pano, que pendurava no vidro sempre que tinha de fazer as suas necessidades. Foi impedida de usar o parque de estacionamento e de falar com as colegas. Sabendo que tinha vertigens, os patrões puseram-na a trabalhar numa zona mais alta, e onde as temperaturas ultrapassavam os 40 graus, o que a fazia estar permanentemente a sangrar do nariz. Tortura, portanto.
Cristina denunciou estas atrocidades à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), e continuou a resistir. Depende daquele salário para viver e para que o seu filho viva. “É pelo meu filho que eu aguento isto tudo”, disse-nos. “O teu filho é assim, tem a doença que tem, porque tu és uma pessoa desprezível”, disse-lhe um dos administradores da empresa.
As inspetoras da ACT fizeram duas visitas à empresa e deram como provado tudo o que aqui relatei. E mais violações ainda. No auto do processo, que nos foi entregue no Parlamento, constam as fotos e os testemunhos que documentam e comprovam pormenorizadamente estas barbaridades patronais. A empresa, mesmo depois de condenada por assédio moral, continuou.
A 10 de janeiro, veio o novo despedimento por parte da empresa, fundamentado num repugnante processo disciplinar com base na alegação de que a trabalhadora, por ter falado sobre o caso, “difamou a empresa”. Mesmo sabendo que a lei proíbe sanções disciplinares com base em declarações ou factos relativos a denúncias de assédio, mesmo sabendo que um despedimento feito contra uma trabalhadora vítima de assédio é, à luz da lei, presumido como abusivo, a empresa insiste. Porquê?
Para patrões habituados ao despotismo, Cristina Tavares é um exemplo a abater, custe o que custar. Fez coisas imperdoáveis para quem acha que é dono dos outros: não aceitou o despedimento nem trocar o seu posto de trabalho por uma indemnização miserável, lutou sozinha pela reintegração que lhe era devida, usou os (poucos) direitos que a lei lhe reconhece para apoiar o filho, resistiu durante meses à humilhação. Denunciou os crimes dos patrões e não se calou.
Neste momento, a empresa aposta em três coisas para fazer vingar a sua estratégia de esmagar a Cristina e de aniquilar o seu exemplo. O tempo que os tribunais demoram até voltarem a dar razão a Cristina (e podem ser meses). A desgraça que é, para uma mãe com um filho de 21 anos que depende totalmente de si, ficar em estado de absoluta necessidade, sem salário e sem direito a subsídio de desemprego (porque a empresa alega a justa causa). E a inação ou o silêncio das instituições que têm de agir agora em defesa dos direitos humanos mais elementares.
Volto por isso à comparação entre as Cristinas. Ninguém pode fingir que não sabe deste caso. Ele tem sido noticiado por jornais e televisões, tem merecido a intervenção do sindicato e dos partidos à esquerda. É gravíssimo e é uma ofensa. Não, não é um programa de televisão. E bem sei que, quando se fala desta parte do mundo do trabalho que não tem o brilho dos ecrãs, o Senhor Presidente tem primado pelo silêncio. Mas é a vida dela e o nosso respeito como país que estão em causa. Não acredito, por isso, que “entre uma reunião e outra” o Senhor Presidente da República não tenha tempo para um gesto para com esta Cristina. Um gesto a sério. Não apenas do “Marcelo Rebelo de Sousa”. Mas do Presidente.
Artigo publicado em expresso.sapo.pt a 11 de janeiro de 2019
Comentários
Caro Soeiro
Caro Soeiro
Há décadas, Bernardo Santareno (salvo erro) escreveu uma peça de teatro, "A traiçaõ do padre Martinho" sobre o assassinato pela GNR de uma jovem feirense durante uma manifestação popular.
A história da Cristina Tavares, pela miserável forma como está a a ser tratada, bem merece tambem ser escrita. Para que não fique esquecida no tempo. Para que se saiba que no século 21 em Portugal (em S.Maria da Feira) ainda se permita que o ser humano seja tratado como no século 18.
Há dias o Sr. Presidente da Câmara da Feira tratava os empresários como herois. Será que inclui nessa lista os patrões da Cristina?
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