Os serviços públicos têm valores?

porBruno Maia

12 de março 2019 - 20:54
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Será que a educação para a diversidade na escola pública deve ser facultativa? O Estado e os serviços públicos são “neutros” e despidos de quaisquer valores? A resposta é simples: não!

Esta semana ficámos a saber que numa escola básica do Barreiro, muitos encarregados de educação (e um deputado...) ficaram “desconfortáveis” com uma palestra sobre orientação sexual e identidade de género, com a participação da associação “rede ex-aequo”, no âmbito da disciplina de educação para a cidadania. A desculpa do desconforto foram os 50 cêntimos pedidos pela escola para financiar a deslocação dos palestrantes (sim, 50 cêntimos!). A verdadeira razão é por demais evidente: a homofobia destes pais que não querem que as suas crias sejam educadas para a diversidade. A coordenadora da escola percebeu bem os reais motivos e declarou que a palestra nunca iria ser obrigatória, até porque compreende que existem “razões religiosas” em algumas famílias para o “desconforto” do tema. Ora aí está o busílis todo da questão! Será que a educação para a diversidade na escola pública deve ser facultativa? O Estado e os serviços públicos são “neutros” e despidos de quaisquer valores?

A resposta é simples: não! Ou seja, claro que os serviços públicos têm valores que os estruturam, moldam a sua atividade e influenciam e são influenciados pela comunidade que servem. Um exemplo simples de compreender é o Serviço Nacional de Saúde: quem nele trabalha sabe que a igualdade na prestação de cuidados é estruturante, ninguém pode ser excluído por qualquer característica pessoal, ideologia, religião, seja lá o que for. Mesmo aqueles que acham que o SNS deve ser aniquilado ou reduzido, sabem que podem entrar pela porta da urgência que serão tratados com todos os recursos que a sua situação de doença exige. E este valor intrínseco do SNS não advém de nenhum artigo da Constituição, mas da sua própria natureza enquanto serviço público (os serviços privados podem recusar cuidados com base na condição económica e, no entanto, a Constituição é a mesma).

A escola pública tem também um conjunto de valores que transmite. Isso é evidente pelo simples facto de existir uma “educação para a cidadania”. Não pode haver, claro, qualquer tipo de discriminação de alunos e famílias, com base na sua religião – o espaço da religião é o espaço da família. Mas o espaço da religião não é o espaço da escola pública. Se as famílias compreendem os direitos que têm no espaço escola, devem também estar cientes dos seus deveres – aprender sobre democracia, igualdade e diversidade, liberdade e solidariedade é um dever de quem tem o direito de frequentar a escola! Porque foram esses os valores que permitiram, ad initium, a criação da própria escola.

Talvez seja difícil (neste tempo) encontrar uma forma de ensinar os descobrimentos que seja maioritariamente consensual. Ou decidir se a carga horária da matemática deve ser superior à filosofia. Ou se a educação sexual deve ser uma disciplina obrigatória desde o 1º ano. Mas há determinados valores que são maioritários e que devem ser ensinados, difundidos e estimulados no espaço da escola pública: a democracia, a liberdade de expressão, a laicidade do Estado, a preservação do ambiente, a liberdade religiosa e sim, sem qualquer margem para dúvidas, a igualdade e a diversidade! A escola tem a obrigação de educar contra o racismo, contra a desigualdade de género e contra a discriminação de pessoas LGBTI+. Não nos esqueçamos que é isso que diz a nossa Constituição no artigo 13 e que os restantes códigos e leis garantem: um casal do mesmo género é, perante a lei, exatamente igual a um casal de géneros diferentes. Não há nenhuma diferença entre a educação contra o sexismo ou o racismo e a educação contra a homofobia ou a transfobia.

É claro que o Estado não pode e nem deve proibir os ensinamentos e valores que os vários catecismos procuram difundir na família e em casa. Mesmo sabendo que muitos deles (senão todos) educam para a discriminação e exclusão de pessoas LGBTI+. Mas o Estado pode e deve garantir que quem frequenta e usufrui da escola pública, será ensinado do que é feita essa mesma escola.

Por isso, a coordenadora da escola do Barreiro não tem razão quando diz que não faz sentido obrigar ninguém a ir a esta palestra. Faz todo o sentido! É esse mesmo o papel da escola: educar para a igualdade e a diversidade!

Em relação ao deputado do PSD, Bruno Vitorino, que se terá revoltado com este “acontecimento” basta apenas dizer isto: um deputado que não conhece preceitos constitucionais fundamentais da nossa república (como a proibição da discriminação) é um incompetente que não está no parlamento a fazer nada!

Bruno Maia
Sobre o/a autor(a)

Bruno Maia

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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