Os rastejantes

porMário Tomé

03 de julho 2015 - 0:32
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O que se passa com o massacre económico e social do povo Grego não tem nada de trágico - as tragédias desenvolvem-se pela vontade dos deuses, onde os homens não passam de joguetes.

“Democracy

There’s no escape/ The big pricks are out/ They’ll fuck everything in sight / Watch your back”

Harold Pinter Prémio Nobel da lite rature de 2005

I

O que se passa com o massacre económico e social do povo Grego não tem nada de trágico - as tragédias desenvolvem-se pela vontade dos deuses, onde os homens não passam de joguetes. Pelo encarniçamento dos mandantes da UE contra todo um povo, expressando de forma mais ou menos explícita que esse povo merece a perseguição pelo que é e pelo que faz pode levar-nos, sem grande esforço a pensar na caracterização de genocídio feita pela ONU. Molock (ou Hitler) anda por aí.

Pelo encarniçamento dos mandantes da UE contra todo um povo, expressando de forma mais ou menos explícita que esse povo merece a perseguição pelo que é e pelo que faz pode levar-nos, sem grande esforço a pensar na caracterização de genocídio feita pela ONU

A reacção, em Portugal, das elites liberais e seus porta-vozes na comunicação e no comentário, está ao nível da sargeta.

Aí se empurram, para ter o melhor lugar no cortejo, os rastejantes.

Grécia igual a Zimbabwe e Sudão, manchete de um grande jornal de referência. Como diziam o inefável Marco António Costa e o irrequieto Nuno Melo, na Grécia nem há um Estado propriamente dito… Trata-se, com uma mensagem colonialista e racista subliminar, da identificação, na opinião pública, do Estado pária, designação da Administração norte-americana para Estados que ajudou a desmantelar e a fragilizar com as políticas do FMI por esse mundo fora.

Como se pode viver com 60 euros por dia, perguntam indignados os gregos escolhidos pelos repórteres de serviço junto dos multibancos condicionados! Bem, 60 euros por dia são 1.800 euros por mês.

A pergunta poderia ser feita – como é que se governam com 60 euros por dia? - aos nossos pobres e novos pobres, desempregados e precários, desapossados recentes dos subsídios de desemprego e de inserção, pensionistas sugados, trabalhadores efectivos de milhares de empresas, etc. governados pela eficaz acção de Passos Coelho ao serviço da troika e por isso distinguido pelos patrões com a medalha de cortiça Amorim.

Grécia igual a Zimbabwe e Sudão, manchete de um grande jornal de referência. Como diziam o inefável Marco António Costa e o irrequieto Nuno Melo, na Grécia nem há um Estado propriamente dito… Trata-se, com uma mensagem colonialista e racista subliminar

O objectivo imediato é usar verdades precárias para construir a mentira sustentada sobre os 5 meses de Syriza e de negociações com o gang da troika. O objectivo final é desacreditar as propostas de alternativa ao esbulho organizado dos salários e pensões socialmente devidos.

Estamos a lidar com a elite da trapaça, a elite da propaganda orquestrada a partir de centrais ideológicas bem instaladas, a elite dos serventuários da finança.

Mas, na realidade, a elite dos seres rastejantes. Dos lambe-botas do dono, daqueles que conhecem de facto o dono, abanam a cauda e lhe lambem os dedos untados e engordurados de espremerem o pagode.

II

Tsipras já tinha avisado a Alemanha e os salteadores a que denominam de credores, que tem de haver um acordo e que se as mais vermelhas das linhas vermelhas (o recuo organizado fez parte da negociação com os predadores) fossem pisadas haveria um referendo na Grécia; não se percebe portanto nem a surpresa, nem os dislates, nem a indignação!

Os rastejantes arrogantes e estúpidos, a maioria de direita e a suprema instância que a apoia, estão dispostos a tudo para impedir que o povo português se inspire no exemplo de dignidade e de coerência racional na defesa da Europa enquanto projecto democrático e solidário

A sabujice é de tal ordem que repercute sem cessar a ideia lançada pelos salteadores de que o referendo não tem objecto! O Conselho Europeu já avisou que a pergunta não é simples. Porque devia ser, presume-se: querem ficar na UE ou sair da UE?

A complicação é que o governo grego defende a Europa e a permanência na UE, enfrentando os que dela fizeram uma ditadura da finança.

Aquela forma que os “media de referência” têm de induzir na opinião pública a superioridade institucional e moral dos manipuladores dos Estados na União Europeia, faz parte do contrato milionário, entre a banca e os donos dos meios de comunicação, destinado a assegurar a conformação das vítimas do assalto com a necessidade desse mesmo assalto.

FMI,BCE, CE e Merkel - o Bando dos Quatro - asseguram a transferência vertiginosa e tresloucada dos rendimentos honestos do trabalho, directos e indirectos, salários e pensões, para o monturo da finança não têm qualquer legitimidade democrática.

Mas os rastejantes arrogantes e estúpidos, a maioria de direita e a suprema instância que a apoia, estão dispostos a tudo para impedir que o povo português se inspire no exemplo de dignidade e de coerência racional na defesa da Europa enquanto projecto democrático e solidário que assegure, aos povos e países que a integram, os meios a que, seria bom lembrá-lo a quem está sempre com o cumprimento das regras na boca, se comprometeram desde Maastricht, apesar de Maastricht ser o tratado fundador da Europa da burocracia e da finança contra a Europa dos povos e da cidadania.

Os rastejantes inteligentes, por seu lado, estão dispostos a aceitar tudo desde que possam continuar a ser tidos como parceiros, reticentes mas parceiros, no esbulho grotesco dos povos e países mais fragilizados com a sua cumplicidade de decénios

Os rastejantes inteligentes, por seu lado, estão dispostos a aceitar tudo desde que possam continuar a ser tidos como parceiros, reticentes mas parceiros, no esbulho grotesco dos povos e países mais fragilizados com a sua cumplicidade de decénios. Não querem levar com a porta na cara em Bruxelas, não confrontam o coro infame dos que proclamam o diktat dos mercados como forma mais elevada de democracia, enredam-se nas malhas do cinismo dos fanáticos da austeridade a que chamam, em coro, respeito pelas regras.

A sua bandeira é aceitar, contrariados, claro, a abjecção das exigências da troika até conseguirem esforçadamente convencê-la a mudar as regras; ao mesmo tempo tudo fazem para não serem confundidos com os radicais irresponsáveis que, enfrentando com coragem, inteligência e sentido profundo dos interesses superiores e soberanos dos povos, lhes permitem engrossar um pouco mais a voz, sempre pusilânime, sempre rastejante, sempre reivindicando o seu papel único e insubstituível na sustentação do status quo, sem vacuidadess demagógicas, sempre uma alternativa garantida nesta Europa complicada, sempre recusando a demagogia de se ouvir o povo - desde Maastricht.

Para este conglomerado de ousados rastejantes o irracionalismo – fundamento de todos os fascismos e de todos os fundamentalismos - da burocracia europeia, de que ninguém já duvida, eles próprios incluídos, mas que estranhamente atribuem ao Syriza que teve a coragem e a iniciativa de tentar introduzir o racional político nas relações internas da UE, é a única forma de manter a ordem e impedir qualquer alteração que, pressentem, possa impor a democracia real contra a burocracia da finança no espaço Europeu

III

Os rastejantes, seus comentadores e anunciantes, passam como cão em vinha vindimada por questões, só aparentemente colaterais, como a opção que o governo do Syriza apresentou em alternativa ao corte das pensões e com os mesmos resultados práticos, ou melhores ainda, na redução da despesa: reduzir os gastos com a Defesa.

Hoje, o perigo está nas instituições que liquidam a democracia com a democracia a escorrer-lhes dos beiços. É preciso cuidado em não tomá-las por aliadas na luta contra a extrema direita política

A política de defesa, dos governos anteriores, que Tsipras quer alterar, orientou-se para a aquisição deslumbrada de fragatas, blindados, caças-bombardeiros, submarinos… numa azáfama de corrupção. As despesas militares da Grécia têm sido as maiores dos países europeus em relação ao PIB.

As encomendas do Ministério da Defesa do governo Samaras andavam por cerca de 60 aviões de combate do tipo Eurofighter, que rondaram os 3,9 mil milhões de euros; fragatas francesas por mais de quatro mil milhões, navios patrulha por 400 milhões; e a modernização necessária da frota helénica existente custará, mais ou menos, outro tanto; mais as munições para os tanques pesados Leopard e também é preciso substituir dois helicópteros Apache de fabricação americana e também é preciso comprar submarinos alemães, por um preço total de dois mil milhões de euros.

E quem são os Estados fornecedores?

Adivinharam: Alemanha e França à cabeça.

São precisos mais argumentos racionais parla perceber as razões da Merkel (Moloch, segundo Sokurov) e de Hollande (percevejo,segundo Brecht) ? E do FMI, o instrumento financeiro dos EUA/NATO?

Fome e desemprego para o povo, armas luzidias e letais para preencher os enfados dos generais e almirantes. Assim mantêm em alta a indústria do armamento.

Um arremedo de guerra fria dá jeito, já que as armas que vendem aos jihadistas não dão para o petróleo apesar de provocarem centenas de milhar de mortos, milhões de refugiados e milhares de afogados no Mediterrâneo de Ulisses

Francisco Assis, com a lucidez habitual da sempre triunfantemente finada social-democracia, critica o Syriza pela aliança com a direita “hipernacionalista”. Esqueceu-se de sublinhar que, ainda por cima, lhe atribuiu a pasta da Defesa.

O Referendo vem aí, a democracia na Grécia de Tsipras não recua. A solidariedade internacional, ganhe o Não ou o Sim, é uma necessidade para garantir que nem a Grécia nem a Europa sucumbirão. A luta, disse alguém, ainda agora começou!

É que, esse facto ,se não houvesse todos os outros, mostra o senso político do Syriza (ou, neste caso, de Tsipras, lui même). Trata-se de saber entrar na equação com a variável (ou constante…) Forças Armadas sob a alta protecção da NATO, quer dizer do Pentágono, quer dizer da CIA, num país com uma das fronteiras mais complexas da Europa.

Os burocratas de Bruxelas e do FMI, velhos corruptos e sórdidos, fazem o papel de Kissinger/ Nixon /Pinochet com o Chile, em 1973. A burocracia europeia talvez não precise de um Pinochet. De qualquer modo de 1967 a 1973 os coronéis já mostraram o que valem. Mais vale prevenir.

O perigo iminente não está nos partidos neonazis, escusam de agitar esse espantalho para deixarem passar a substância da coisa.

Hoje, o perigo está nas instituições que liquidam a democracia com a democracia a escorrer-lhes dos beiços. É preciso cuidado em não tomá-las por aliadas na luta contra a extrema direita política.

O Referendo vem aí, a democracia na Grécia de Tsipras não recua.

A solidariedade internacional, ganhe o Não ou o Sim, é uma necessidade para garantir que nem a Grécia nem a Europa sucumbirão.

A luta, disse alguém, ainda agora começou!

Mário Tomé
Sobre o/a autor(a)

Mário Tomé

Coronel na reforma. Militar de Abril. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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