Desconfiarão os pensionistas desta abundância de declarações de amor e de que quem cortou as suas pensões ou anunciou que a sustentabilidade do sistema exigia que elas fossem ajustadas por menos do que a inflação ou, em bom português, um corte real? Em qualquer caso, vale a pena estudar as visões circulantes sobre o regime de Segurança Social e, em particular, os argumentos que mais se ouvem sobre os pensionistas e reformados: são muitos e dependem do Estado, determinando as eleições.
São muitos, mas quantos?
Começo por questionar quantos são. Um editorial de um jornal proclamava, há dias, que são 3.638.367, citando os dados de 2022. Somava-lhes os 738.168 funcionários públicos (2023) para concluir que este universo inclui mais de 4,3 milhões, sendo necessário ainda juntar as suas famílias diretas. Logo, poderia estar aqui cerca de metade da população. O problema é que a conta está mal feita. O que a estatística citada revela é o número de pensões pagas pela Segurança Social e pela Caixa Geral de Aposentações e não o número de pensionistas, que é inferior. A explicação é óbvia, há pessoas que recebem duas pensões (velhice e viuvez, ou da CGA e outra). Nem todos os dados são públicos, mas a diferença será de mais de meio milhão de pessoas.
Os pensionistas são muitos, mas não tantos como tem sido dito; e não são dependentes do Estado. Sobretudo, são pobres
Em todo o caso, com a inversão da pirâmide demográfica em pouco mais do que uma geração, há em Portugal menos crianças e uma percentagem crescente de idosos. Temos hoje em Portugal menos um milhão de jovens até aos 15 anos do que há 50 anos, reduzindo-se a sua percentagem na população de 28,6% para 12,8% entre 1972 e 2022.
Prisioneiros do Estado?
Vítor Bento, num escrito para o “Observador”, apresentava outras contas para uma conclusão drástica: adicionando as pensões a quem recebe o salário mínimo, o subsídio de desemprego ou o rendimento social de inserção, e ainda os funcionários públicos e das empresas públicas, propôs-se “quantificar o número de residentes em idade de votar cujo rendimento depende do Estado”. Como notará quem o lê, isto é extravagante e salta à vista que os trabalhadores a salário mínimo não são pagos pelo Estado, exceto os seus próprios funcionários. Bento tem uma explicação, é que “ter o rendimento dependente do Estado [...] não implica necessariamente que o rendimento seja pago pelo Estado. É o caso do salário mínimo, que é pago pelas empresas, mas o seu valor tem sido decidido politicamente pelo Estado” (e deveria ser decidido por quem?). Feita a mescla, Bento chega às conclusões, assim apimentadas pela sua fantasia conceptual: 61,4% da população residente com 18 ou mais anos “depende” do Estado. No tempo do CDS, a direita chamava a isto “subsidiodependência”, o que Ventura copiou com garbo. Pedro Norton, que no “Público” veio desenterrar a invetiva, explica que se trata de “uma população tristemente cativa”, à espera de um valente que a liberte das suas cadeias.
Este raciocínio não é só preconceituoso, é insultuoso: os idosos não são dependentes do Estado (nem os que recebem subsídio de desemprego, para o qual descontaram, ou o salário mínimo, para o qual trabalham). O Estado paga as pensões por ser obrigado a retribuir o tempo e valor dos descontos feitos durante a vida de trabalho. Está simplesmente a pagar o que deve. É o Estado que é dependente dos pensionistas e não o contrário. No entanto, aquele cálculo tem uma estratégia. Não é difícil descortinar o que a libertação dos “cativos” representa para o presidente da Associação de Bancos, o objetivo há tanto tempo perseguido de captar umas dezenas de milhares de milhões de euros de descontos da Segurança Social para os fundos financeiros. Cada pessoa, assim “libertada”, poderia aplicar os seus descontos numa aventura bolsista, esperando uma taluda e arriscando a bancarrota. Depois da experiência da ditadura militar chilena que impôs um sistema privado que faliu poucos anos depois, é ousado sugerir esta alternativa. Será por isso curioso ler as propostas do grupo criado pelo Governo atual para estudar o futuro da Segurança Social, não deixando de ser preocupante que tenham sido adiadas para depois das eleições, como se não se exigisse cartas na mesa.
Muitos e muito pobres
Portanto, os pensionistas são muitos, mas não tantos como tem sido dito; e não são dependentes do Estado (os funcionários públicos também não, trabalham para um patrão que depende deles). Sobretudo, são pobres: enquanto a estatística do limiar de pobreza marca 507 euros, há 212.327 pensionistas do regime geral da Segurança Social que recebem até 278 euros e 1,34 milhões abaixo de 443 euros (gráfico). A pensão média de velhice era de 498 euros em 2022 e as de invalidez e sobrevivência menores — é a estes pobres que Montenegro promete mínimos de 820 euros. Nunca os vai pagar nem sequer apresentar a conta, dado que isso custaria, na hipótese forçada de todas essas pessoas que recebem até 443 euros estarem no limite superior daquele valor, um custo anual mínimo de sete mil milhões de euros (o PSD indicou 300 milhões em contas maltrapilhas) para esse segmento dos pensionistas. A banalidade da mentira instalou-se e o que importa são as eleições, e o PSD prometerá tudo a toda a gente, que trairia se chegasse ao Governo.
Pensionistas no regime geral da Segurança Social
Invalidez e velhice, 2022
FONTES: Contas da Segurança Social e Eugénio Rosa
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 8 de dezembro de 2023