Assinalou-se em dezembro um ano da presidência do autoproclamado ‘anarco-capitalista’ Javier Milei na Argentina. Milei conquistou a atenção internacional durante a campanha de 2023 devido à radicalidade das suas afirmações ultraliberais – por exemplo, chamando o Estado de ‘criminoso’ ou prometendo acabar com a maioria dos ministérios – e ao seu estilo provocatório, e até francamente bizarro (recordemo-nos da sua imagem de marca de cabelo desgrenhado e motosserra na mão).
O Presidente argentino, inicialmente apelidado de ‘louco’, ‘instável’ e ‘radical’, é agora efusivamente elogiado na imprensa internacional. A revista Economist, conhecida pelo seu apoio a governos neoliberais, mesmo que ditadores, reservou-lhe mesmo a capa de um número (tal como a Time) e desfez-se em elogios às politicas do ‘revolucionário do mercado livre’, afirmando sem pudor que:
«fortalecido pela clareza das suas convicções e guiado pela teoria do mercado livre, Milei tem uma melhor chance de sucesso que os seus antecessores»
Por cá, o Público afirma categoricamente que Milei «pôs meio mundo a seus pés». A Iniciativa Liberal, aliás, apressou-se a declarar afinidades com a ideologia de Milei e várias figuras do partido têm feito uma defesa acérrima das suas políticas nas redes sociais.
Milei alia o ultraliberalismo ao ultraconservadorismo (por exemplo, na área dos direitos reprodutivos), tendo viralizado pelas suas tiradas contra a ‘ideologia woke’ e o ‘marxismo cultural’ (seja lá o que isso for). Com tudo isto, tornou-se num dos ícones mundiais da extrema-direita. No entanto, o suposto sucesso do que o próprio apelida de «o maior programa de austeridade da história [da Argentina]» e o seu «desprezo infinito pelo Estado» tornaram-no também numa das figuras de proa do neoliberalismo.
Milei está a servir como veículo de relegitimação desta ideologia na sua forma mais radical e violenta – não tarda veremos a mobilização deste caso para justificar a aplicação do programa de ‘terapia de choque’ noutras geografias. Devemos por isso ser capazes de avaliar criticamente a presidência Milei para estarmos à altura deste confronto ideológico.
O principal argumento dos fãs de Milei é, sem dúvida, a resolução do persistente problema da inflação, cuja taxa mensal desceu dos 26% em dezembro de 2023 para 2.7% em outubro de 2024, supostamente por ter parado de ‘imprimir dinheiro’ para financiar o Estado. É também celebrado o facto de Milei ter cortado cerca de 30% da despesa pública no espaço de um ano e de ter regressado aos saldos primários positivos, não vistos na Argentina há mais de uma década. Apontam também para sinais de uma tímida recuperação económica: o PIB contrairá cerca de 4% em 2024, mas o terceiro trimestre registou um regresso a um crescimento positivo em comparação com o trimestre anterior (caiu em comparação com o período homólogo, todavia) e 2025 trará uma taxa de crescimento entre os 5 e os 6%.
Dito desta forma, e sobretudo comparando com o passado económico turbulento do país, os resultados de Milei são apresentados quase que como um milagre, possível apenas devido ao seu cumprimento escrupuloso dos ensinamentos da teoria económica liberal. As consequências sociais das suas políticas como a subida de 11% na população que vive abaixo da linha de pobreza (de 42% para 53%), assim como a enorme queda nos salários reais e aumento do desemprego, são apenas notas de rodapé ou males necessários na história de ‘estabilização’ da economia argentina por via de reformas neoliberais. Importa, assim, dialogar com estes argumentos.
Primeiro, é Milei um líder com competências e políticas extraordinárias que operou um milagre económico na Argentina? A resposta é um redondo não. A queda na inflação é simplesmente o resultado de políticas orçamentais e monetárias restritivas. Ou seja, quando se corta brutalmente a despesa pública, cancelando obras públicas, subsídios, apoios sociais, aumentos de salários e de pensões, ao mesmo tempo que interrompe a emissão monetária, coloca-se um travão na procura agregada que abranda o aumento dos preços. Nada de mágico ou especialmente engenhoso aqui. O ajustamento é feito à custa dos trabalhadores e dos mais pobres, os mais afetados pela queda brutal dos rendimentos reais e pelo desemprego. Provocando uma recessão na economia retira-se pressão para a subida dos preços; basta imaginar que se as pessoas não conseguirem comprar alimentos os preços destes também não sobem. A descida da inflação de Milei, por isso, não é fruto de nenhuma genialidade económica e é conseguida através de enormes custos sociais.
A alegada recuperação económica de Milei é também uma fraude. Além da política orçamental restritiva vista acima, o presidente argentino fez essencialmente duas coisas: desvalorizou brutalmente o peso em relação ao dólar de uma assentada e diminui a taxa de juro de referência do banco central. A muito tímida recuperação económica argentina no último semestre de 2024 alicerça-se no regresso a saldos comerciais positivos altos e na expansão do crédito. O primeiro não resulta dum especial dinamismo das exportações, mas sim na queda brutal das importações devido à desvalorização da moeda, que torna os preços dos produtos vindos do exterior artificialmente mais caros, diminuindo assim ao mesmo tempo o poder de compra dos argentinos. De igual forma, o segundo resulta da descida das taxas de juro, que estimula a concessão de crédito simplesmente porque este se torna mais barato (aqui haverá também algum efeito da estabilização macroeconómica trazida pelo controlo da inflação).
Voilà: assim se consegue fabricar a ilusão de uma recuperação económica com dois truques. Não houve nenhuma transformação significativa ou estrutural na economia argentina, que continua a confrontar-se com os mesmos problemas que a tornam extremamente vulnerável e dependente.
O problema da economia argentina não é ter um ‘Estado grande e gastador’ – é muito mais complexo do que isso. Desde o final da década de 70 que o país sofreu um processo de desindustrialização precoce e forte endividamento externo em virtude da desregulação financeira e integração nos mercados globais. A Argentina tem, por um lado, uma estrutura produtiva deficitária muito assente no setor primário, dependendo assim da importação de tecnologias e produtos manufaturados. Configura-se, assim, uma economia dependente e muito vulnerável à procura externa de commodities e às oscilações dos termos de troca. O acumular de défices na balança de pagamentos trouxe um galopante endividamento externo e uma crónica falta de reservas em moeda estrangeira, que foram sendo colmatadas com a contração de dívida em moeda estrangeira, formando-se assim um ciclo vicioso. Isto criou pressões para desvalorização do peso com consequências inflacionárias, com expressão extrema nas sucessivas crises económicas e sociais.
A política de Milei não resolverá nenhum destes problemas. Obcecado com a diminuição do peso do Estado, abster-se-á de medidas de política industrial que poderiam transformar a estrutura produtiva de baixo valor acrescentado e fraca sofisticação tecnológica da economia argentina. A indústria foi o setor cuja parte no PIB caiu mais durante o primeiro ano da presidência Milei (1 p.p.). A recuperação está assente nos setores agrícolas e energéticos, reforçando-se a primarização da economia. Mesmo a desvalorização cambial nominal posta em marcha por Milei, que podia ter aumentado a competitividade dos produtos industriais, foi ineficaz porque a inflação que daí resultou causou o declínio da taxa de juro real para níveis próximos do início da sua presidência.
Tendo abdicado da emissão monetária para financiar o Estado e agora sem inflação para baixar o valor real da dívida, Milei tem continuado a endividar o Estado argentino mesmo com saldos orçamentais positivos. O serviço dos juros da dívida continua a ter um peso enorme e o país dispõe agora de menos instrumentos para o controlar. A escassez de divisas estrangeiras permanece e Milei já está a namorar um novo empréstimo do FMI. Já prometeu também passar a uma taxa de câmbio flutuante e remover controlos de capitais, o que poderá tornar a economia argentina muito mais instável e vulnerável a choques externos. O radicalismo pró-mercado de Milei está a privar o Estado argentino de instrumentos essenciais de intervenção na economia, o que aprofundará a dependência e a vulnerabilidade externas do país.
Sem surpresas, a terapia de choque neoliberal trouxe, além de endividamento, dependência e estagnação económica, enormes custos sociais. O declínio real das pensões e dos salários é gigantesco em quase todas as atividades profissionais, registando-se igualmente um aumento galopante da pobreza e da privação material. Isto não é um ‘mal necessário’ nem um ‘dano colateral infeliz’. Como bem sabemos em Portugal, o objetivo das políticas de austeridade é fazer o ajustamento estrutural das economias pela via do empobrecimento e à custa de quem trabalha. Sabemos também que não tem que ser assim e que há outras alternativas. Não podemos aceitar que esta lógica se naturalize e que sejam os pobres a pagar as crises.
A presidência Milei não constitui nenhum milagre económico nem nenhuma salvação da economia argentina. Pelo contrário, tem o potencial para agravar os seus problemas estruturais e, pelo caminho, causará enorme sofrimento social. Devemos suspeitar de todos aqueles que, como a Iniciativa Liberal, saúdam este programa político de empobrecimento, dependência e desigualdades.
