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Os livros nos EUA e a cultura do banimento

A campanha para as eleições do mid-term nos EUA, em novembro próximo, serviram para estimular o trumpismo neste combate. Desde há um ano que políticos republicanos têm denunciado títulos disponibilizados nas bibliotecas públicas, sobretudo as escolares.

O que têm em comum Harry Potter, o livro de banda desenhada sobre o Holocausto Maus, 1984 e Onde Está o Wally? E Martin Luther King Jr., Malala Yousafzai e Duke Ellington? Os primeiros são alguns dos muitos livros banidos das bibliotecas públicas dos EUA; os segundos, os biografados em outras tantas dessas obras que estão sob o fogo do conservadorismo radical nesse país.

Esta é a nova trincheira da resistência ao neofascismo nos EUA: a luta contra o banimento de livros.

Dirão alguns que sempre foi assim, que é “normal”: quem não se lembra da sanha de Sousa Lara contra Saramago? Já na Grécia Antiga, os livros tinham os seus detratores ― Sócrates (o filósofo), por exemplo ― e desde o Império Romano à Inquisição que o Estado se especializou na censura. Mas o fascismo inaugurou um novo patamar. Usa os livros, na sua escalada rumo ao poder, como combustível do pânico moral que o alimenta: não é apenas (ou até principalmente) o poder estatal que persegue obras e autores, são as hordas conservadoras que são estimuladas a fazê-lo. As fogueiras onde ardiam livros foram polos de mobilização nazi nos anos 30: a mole era inspirada a marchar pelo direito à ignorância. Hoje, são as bases trumpistas que empunham por novos índexes que circulam nas redes e denunciam os livros perigosos. Tudo, claro, em nome da proteção das crianças.

Uma campanha política concertada

Em Oklahoma, legislou-se que os pais que opinem que nas escolas dos seus filhos existem livros que devam ser banidos, nomeadamente que tratem questões “sexuais e de género”, podem exigir o banimento dos livros… e receber 10 mil dólares por cada dia em que o livro permaneça nas bibliotecas!

A campanha para as eleições do mid-term, em novembro próximo, serviram para estimular o trumpismo neste combate. Desde há um ano que políticos republicanos têm denunciado títulos disponibilizados nas bibliotecas públicas, sobretudo as escolares. Ao mesmo tempo, começaram a correr nas redes avisos aos pais sobre o perigo que certos livros significariam para os seus filhos. E estes começaram a exigir que cada vez mais livros fossem banidos das bibliotecas. A onda cresceu e em vários estados foram aprovadas leis estabelecendo critérios que justificariam o banimento de muitos livros; noutros casos, políticos republicanos concorrem às eleições de novembro prometendo mais restrições neste terreno. Os professores e bibliotecários que têm resistido são pressionados e reprimidos ― em Gillete, no Wyoming, bibliotecários foram processados (ainda que sem consequências) por manterem na biblioteca pública livros como This Book is Gay e How Do You Make a Baby. Em Ridgeland, no Mississipi, um mayor reteve 1.100. 000 dólares de financiamento público a uma biblioteca que se recusou a retirar livros com temáticas LGBTQIA+ do seu catálogo. Em Oklahoma, legislou-se que os pais que opinem que nas escolas dos seus filhos existem livros que devam ser banidos, nomeadamente que tratem questões “sexuais e de género”, podem exigir o banimento dos livros… e receber 10 mil dólares por cada dia em que o livro permaneça nas bibliotecas!

All Boys Aren´t Blue

Mas que livros são estes, afinal? Que perigo representam? Segundo os denunciantes, quase sempre militantes trumpistas, uns, seriam pornográficos; alguns, violentos; outros ainda fariam com que os jovens brancos tivessem “vergonha da sua raça”.

Indo aos factos, entendemos do que se trata. Segundo um relatório da Pen America, entre julho de 2021 e junho de 2022, 1.648 livros foram banidos das escolas. Destes, 467 têm protagonistas ou destacam personagens racializados; 247 abordam diretamente o racismo; e 379 têm como temática e/ou protagonistas pessoas LGBTQIA+. 42 do total são livros infantis, incluindo biografias de personalidades como as que já citamos.

Um caso paradigmático é o de All Boys Aren't Blue, de George M. Johnson, jornalista, negro e queer, que escreveu estas “memórias-manifesto” sobre a sua luta para crescer sob esta opressão múltipla. O seu livro, lançado há cerca de dois anos, foi dos primeiros a ser denunciados: em setembro de 2021 o mayor de Kansas City iniciou a perseguição. Passado um mês, oito estados tinham-no banido e em janeiro eram já quinze. Em vinte estados o livro foi, de alguma forma, banido ou denunciado e, na Florida, o livro (!) e o autor foram levados a tribunal. Da sua parte, George M. Johnson respondeu com força e deu voz a diversas campanhas como a #booksnotbans ou a Banned Books Week. A nível nacional, uma frente que junta bibliotecários, pais, educadores, advogados e ativistas, sobretudo LGBTQIA+, tem-se mobilizado. A resposta tem tido também uma forte adesão da rede de livrarias independentes (estas têm vindo a unir-se contra as pressões monopolistas da Amazon, paralelamente aos trabalhadores desta multinacional, propiciando ao mesmo tempo uma força de resistência ao conservadorismo radical).

As palavras são importantes”

All Boys Aren't Blue chegou aos tops de vendas e a resistência aos banimentos de livros tem crescido. Mas é o próprio George M. Johnson que assume que esta é uma luta política de alta intensidade que não deve ser menosprezada. Não é só de livros, mas de vidas que se trata. Diz o autor: “Se eu [em criança] tivesse um livro como este, ele teria validado a minha experiência, a minha verdade. Ter-me-ia dado palavras, ferramentas. As palavras são importantes. Quando não tens palavras para o que sentes, estás num lugar complicado para existir.”

A batalha pelos livros, nos EUA, mostra de onde vem a ameaça e para onde apontar baterias; e dá também um exemplo de resistência levada a cabo por ativistas, autores e comunidades

Por cá, nada se tem falado desta guerra cultural e política. Dos EUA, colunistas e opinadores importam a denúncia do wokismo e da cultura do cancelamento ― tendo a discussão pública chegado ao ridículo de ser mobilizada contra algo que, por cá, não existe. Mas, mais grave, a direita também tem conseguido plantar a ideia de que a liberdade de expressão está colocada em causa pelo dito politicamente correto e pelo identitarismo ― pelos movimentos sociais e pela esquerda, entenda-se. A confusão ganhou espaço no mundo cultural e literário: pretensos debates sobre se brancos podem traduzir autores negros ou héteros escrever sobre LGBTQIA+ foram tomados como opiniões dos movimentos antirracistas ou LGBTQIA+ que nunca defenderam tal coisa. O confucionismo tornou-se uma cunha cravada entre ativistas e intelectuais.

A batalha pelos livros, nos EUA, mostra de onde vem a ameaça e para onde apontar baterias; e dá também um exemplo de resistência levada a cabo por ativistas, autores e comunidades, mostrando como apostar na frente cultural é uma batalha de vida ou de morte para quem é explorado e oprimido ― uma luta central contra o neofascismo, pela liberdade e pela emancipação.

Sobre o/a autor(a)

Assistente editorial e ativista laboral e climático
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