Os limites de Cavaco

porLuís Fazenda

14 de novembro 2015 - 2:31
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Não contemporizar com ultrapassagens aos limites de Cavaco é a mais urgente das seguranças aos acordos à esquerda, firmados no Parlamento. A pretensa estabilidade exigida começa logo aí, a estabilidade constitucional.

Durante muitos anos a tendência dominante no regime político vigente foi a de considerar que os poderes do Presidente da República não lhe conferem atribuições extra no que se refere à indigitação de primeiro-ministro e posse do respetivo Governo.Não compete ao Presidente escolher ministros nem desenhar fórmulas de Governo. Essa leitura decorre da Revisão Constitucional de 1982 onde se estabelece uma responsabilidade institucional do Governo face ao Presidente e se acentua uma responsabilidade política face ao Parlamento.

Assim sendo, o Presidente, no âmbito da mera responsabilidade institucional, só pode demitir o Governo por irregular funcionamento das instituições democráticas. O debate dessa Revisão Constitucional, que irmanou PSD, PS e CDS, foi uma resposta pronta aos governos de iniciativa presidencial de Ramalho Eanes. Afastar Belém da intervenção governativa foi o mote da coisa.

Alguns dos mais reputados constitucionalistas, na linha de Vital Moreira, consideraram que este elemento, entre outros, concorreu para o fim do semi-presidencialismo originário da Constituição e a sua mutação para um regime parlamentar mitigado por uma intervenção arbitral do PR, salvo situações de grave crise política, onde pode dissolver o Parlamento e convocar novas eleições.

Neste momento, Cavaco Silva não pode recorrer ao instrumento da dissolução porquanto ele é vedado nos seis meses a seguir ás eleições para a Assembleia da República, exatamente até para impedir uma revanche política do PR. Costumava dizer-se que o PR não tinha um mata moscas mas tinha a bomba atómica...

A questão do PR não estar delimitado por um prazo para indigitação de uma personalidade para primeiro-ministro não autoriza a teoria de que pode manter indefinidamente um Governo demitido, mercê de rejeição de programa no Parlamento. Isso seria um conflito entre órgãos de soberania, um bloqueio ao Parlamento, um claro ato de abuso de poder. Mais a mais, quando a maioria do Parlamento pretende outro Governo, expresso em compromisso alargado. Já para não falar da burrice de ter um Governo em xeque diário no hemiciclo. Mas há outra teorias bizarras.

Santana Lopes disse por estes dias que o Presidente da República poderia exigir estes ou aqueles ministros porque já o fez quando da crise do "irrevogável", obrigando Passos Coelho a incluir Portas no elenco governativo. Não há qualquer registo desse facto, mas se o fez, fê-lo a título pessoal e por consentimento privado de PSD e CDS. O mais curioso nessa observação de Santana Lopes foi ter-se referido ao caso do governo de Passos Coelho e não ao seu próprio exemplo, de nomeação intercalar de primeiro-ministro numa legislatura. Sampaio, então PR, exigiu-lhe determinados ministros? Vetou outros? Não consta.

Pode admitir-se, e terá acontecido, que vários presidentes tenham dissuadido o Chefe do Governo a propor ministro ou secretário de Estado por razões de precária idoneidade dos ditos, para dizer o menos. Essa é manifestamente uma responsabilidade institucional que cabe no papel do Presidente. Contudo, o que não cabe mesmo ao PR é estabelecer o programa do Governo. Pode até afirmar-se politicamente demarcado do executivo a que der posse mas não pode roubar ao Parlamento a competência de viabilizar o programa e de fiscalizar a sua atuação.

Disse alguém, há longo tempo, que se a geometria tivesse interesse de classe todos os seus axiomas seriam distorcidos a bel prazer dos poderosos. E aqui vemos que as elites que acabaram com o semi-presidencialismo a quererem agora, em jeito arbitrário, e por conveniência oportunista mascarar a Constituição do que não é.

Não contemporizar com ultrapassagens aos limites de Cavaco é a mais urgente das seguranças aos acordos à esquerda, firmados no Parlamento. A pretensa estabilidade exigida começa logo aí, a estabilidade constitucional.

Sobre o/a autor(a)

Luís Fazenda

Dirigente do Bloco de Esquerda, professor.
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