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Os lambe-botas da Europa

Hollande mentiu sobre os valores do défice porque aqueles que continuam a destruir o projecto europeu lhe permitiram tal mentira em nome do espezinhamento e pobreza do aluno português e do conto para crianças grego.

Enquanto democratas e republicanos destroem o sonho americano ao eleger Clinton ou Trump como candidatos a presidente [este artigo foi escrito antes de se conhecer o resultado das eleições dos EUA], a Europa continua a arruinar o sonho europeu com a destreza técnica dos piores contabilistas de mercearia. Para uns, retenção de stock contada a cada vírgula do défice; para outros, vende-se fiado sem sequer anotar na folha de caixa. Quase no balanço, o presidente francês diz tudo o que não pode dizer no livro "Um presidente não deveria dizer isso", publicado por dois jornalistas do "Le Monde". Com franqueza, o lixo que se suspeitava: François Hollande mentiu sobre os valores do défice porque... pôde. Como disse Jean-Claude Juncker - "porque é a França". Mentiu porque aqueles que continuam a destruir o projecto europeu lhe permitiram tal mentira em nome do espezinhamento e pobreza do aluno português e do conto para crianças grego. A idade adulta na Europa serve-se assim: "à la carte" mas com gato por lebre.

A França ultrapassou o limite do défice dos 3% mais de 10 vezes desde que o euro deu à luz e sempre escapou às sanções previstas nos pactos orçamentais europeus. Agora, Hollande apelida a corrupção e o abuso como sendo direitos ou "um privilégio dos grandes", admitindo o acordo secreto (entre 2012 e 2017) com a Comissão Europeia de Juncker e de Durão Barroso que permitiu à França corrigir o défice e escapar às sanções. Para o Pacto de Estabilidade e Crescimento toca a marcha fúnebre e para Hollande - especialista em morrer várias vezes - enumera-se pela conta do seu último suicídio político. Há já quem exija a destituição e, se essa hipótese é remota, quase certo é que será a primeira vez que na V República um presidente não se candidatará a um segundo mandato.

Ao assegurar que as promessas francesas à Europa foram "uma mentira pura e simples, aceite por todas as partes" para permitir à Comissão Europeia continuar a atacar Portugal e Grécia com todas as medidas restritivas e de empobrecimento sentidas nos últimos anos, percebe-se bem o embuste. É inqualificável como, entre muros, o Governo de Passos se gabava da proeza de ter ido além do que a troika nos exigia, entalando o país entre a punição e o masoquismo. É agora indesmentível que o Governo de Passos foi o mestre da subserviência. Foi assim que nos deixámos estar, cantando e rindo. "Comme il faut" era o que Hollande pedia a Merkel, Juncker e Durão para soletrarem, num pacto sem vergonha e com a dimensão de verdadeiros candidatos a algozes da Europa enquanto alguns lambiam botas.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 9 de novembro de 2016

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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