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Os filhos da mãe e os "filhos das outras"

Um jogador, pés de barro ou de tijolo, que marca em seis jogos consecutivos na Liga dos Campeões do ano passado, ultrapassando o recorde de Mário "voando entre os centrais" Jardel.

Um homem, de coragem e peito aberto, ataca a linha lateral rumo aos balneários, recusando ser cúmplice com as manifestações de racismo que invadem os estádios de futebol. E sai. Sai sem companhia porque ninguém estava preparado para dar mais de si ou para ser exemplo.

Um jogador de futebol faz-nos debater, sem aspas, o racismo em Portugal. O futebol era um lugar que desconhecia o "timing" desta cidadania. Este é o momento em que o "mal-afamado" futebol pode educar nas ruas, nos cafés, nas famílias. Foi um cidadão sem complexos de colonialismo português, maliano de naturalidade francesa, a fazer o que ainda não tinha sido feito num campo de futebol em Portugal. Marega, o recordista azul e branco da liga milionária, marcou no domingo o seu maior golo. Cruzou a meta sozinho numa corrida solitária, desenganou colegas e adversários, olhou de frente os árbitros, ensaiou dois portentosos piretes de técnica e mandou-os àquela parte nas redes. Cabeça no sítio e coração quente, esteve muito acima de nós. Um portento, o Moussa Marega que sobrevoa entre racistas. Aos seus pés.

Forma ou conteúdo. É-me indiferente o enternecedor debate sobre se Portugal é um país racista ou se, não sendo, alberga demasiados racistas. Há racismo em Portugal e isso devia bastar-nos e informar a acção, ponto final, parágrafo. De facto, não precisamos de vírgulas, não precisamos de aspas, não precisamos de "mas". Precisamos de virar a página, novos capítulos, novos livros. Não confundo a cidade de Guimarães ou o seu Vitória com energúmenos que devem ser punidos pela justiça. A nota de rodapé dá conta de que as equipas do F. C. Porto e do Vitória deviam ter deixado o campo com Marega. Mas agora que sabemos que as equipas poderiam perder entre 5 a 8 pontos caso abandonassem o terreno de jogo (magníficos regulamentos, estes...), é gratificante pensar que se escreveu direito por linhas de fundo. Se assim fosse, a discussão estaria agora centrada no futebol e no "racismo-gate", futebolês dos 3 pontos e das suspeições. Tudo em detrimento da verdadeira escolha entre a civilização ou a barbárie.

Notícias do fundo do poço. Algo está muito errado quando vemos um deputado eleito a garantir que se está "nas tintas para a Constituição", negando a existência de racismo porque os hipócritas "não passarão". O líder do Chega faz do líder do PNR um menino da mocidade: encostado à mais extrema da extrema-direita, Pinto-Coelho ainda consegue afirmar que "só a estupidez e a falta de noção levam a que se imite sons de macaco no estádio e que se apoie isso". Uma das vantagens dos momentos de definição é, como cantava Chico Buarque em "Cálice", a separação clara entre os filhos da mãe e os "filhos das outras".

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 21 de fevereiro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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