Escrevo este texto sabendo-se já que Donald Trump conquistou, pela segunda vez, a Presidência dos Estados Unidos da América (EUA). No quadro legislativo, o Partido Republicano alcançou a maioria no Senado e está a uns escassos quatro lugares (que estarão, à partida, garantidos) de uma maioria na Casa dos Representantes. Nestas eleições, o partido de Trump surpreendeu, com uma vitória em toda a linha e fazendo o triunvirato do poder americano. São muitas as leituras que podem ser feitas, em especial à esquerda, com várias lições a retirar.
Desde logo, o triunfo eleitoral dos Republicanos não significa uma vitória por si só – este resultado foi, acima de tudo, uma derrota dos Democratas. Com a retirada do atual Presidente, Joe Biden, da corrida à Casa Branca, o Partido indicou Kamala Harris como a porta-estandarte a estas eleições. Desde o início que a campanha democrata apresentou várias falhas e inexatidões, culminando num resultado desastroso.
Começo por rejeitar a tese que tem sido amplamente propagada - não foi o “wokismo” (nem qualquer outra narrativa inventada pela extrema-direita) que levou a que os Democratas perdessem cerca de 13 milhões de votos em relação às eleições de 2020 (Trump perdeu apenas 2 milhões). Pelo contrário, e embora existam diversas razões, podemos resumir o que se passou a uma única questão de fundo: a campanha do Partido Democrata não foi orientada para os eleitores. Como Bernie Sanders, senador independente e progressista, referiu, os democratas, ao negligenciar os trabalhadores, não poderiam esperar outra coisa que não fosse ser abandonado por eles.
Ao invés de apresentar um discurso forte e apelativo para quem trabalha, a campanha democrata focou-se em manter um tom extremamente moderado, repetindo a mesma narrativa da campanha falhada de 2016. O cerne do discurso assentou num apelo vazio à união do país, tentando, através de diferentes formas, disputar o eleitorado republicano. Sem surpresa, foi uma estratégia que falhou por completo (94% dos republicanos votaram em Trump em 2020, mantendo a percentagem em 2024).
Em síntese, a campanha de Kamala Harris assumiu um discurso mais à direita, tentando concorrer com os republicanos no seu próprio campo. Além do foco na moderação, os Democratas convergiram para temas como a fronteira, mudando as suas políticas e abdicando das posições que anteriormente defendiam. O anúncio (e quase endeusamento) de figuras republicanas pelas quais as pessoas não nutrem qualquer simpatia prejudicou também a esforço democrata. Acima de tudo, a campanha de Harris falhou na captação de votos e contribuiu para a normalização de posições da extrema-direita republicana.
Recorrendo à forma como a economia foi abordada, este tema revelou-se um desastre para a campanha dos Democratas. Enquanto os republicanos perceberam como explorar a situação económica, prometendo mundos e fundos no sentido de alavancar a vida das pessoas, Kamala Harris cavou a sua própria sepultura. O Partido Democrata revelou-se incapaz de explicar como pretende combater o aumento do custo de vida ou controlar a inflação, não tendo um discurso apelativo para a população.
Bastou a Trump referir que a inflação e o lá preços eram mais baixos durante a sua presidência, entre 2016 e 2020, do que sob a presidência dos democratas entre 2020 e 2024, estabelecendo uma ligação entre o partido no poder e as dificuldades sentidas pelas pessoas. Obviamente que, entre outros aspetos, para a larga maioria da população que sobrevive de salário em salário, a forma como as próprias carteiras são afetadas é um assunto crucial.
Uma outra questão que deve ser levantada - o foco da campanha num tema só falhou. A ação do Supremo Tribunal americano, que retirou a proteção constitucional ao aborto nos EUA, representa um profundo retrocesso e um ataque às mulheres. Rapidamente, os Estados republicanos aprovaram leis no sentido de proibirem o acesso ao aborto. Para o Partido Democrata, este tema era uma das, senão a principal, grandes apostas, sendo visto como a chave da eleição. Não funcionou e não foi suficiente para mobilizar os eleitores.
Por outro lado, veja-se o que aconteceu no Missouri, um Estado profundamente conservador e dominado pelo Partido Republicano de Trump. Nas eleições dos EUA, além da escolha do Presidente, senadores e congressistas, os americanos são chamados a pronunciar-se sobre referendos em cada Estado. Uma das propostas colocadas a voto, a Proposição A, defendeu o aumento do salário mínimo anual até 2026 e a obrigação das entidades patronais em dar uma hora de baixa médica por cada 30 trabalhadas. Num país em que o Estado social é praticamente inexistente, esta medida representa um enorme avanço - e teve o apoio de 60% da população do Estado. Numa realidade marcada pelo conservadorismo e em que a extrema-direita reina, esta situação dá pistas de como a esquerda poderá ter avanços.
E o que acontecerá agora? À semelhança de 2016, os EUA confirmam o seu estatuto enquanto paraíso da extrema-direita, com uma chuva de nomeações que asseguram que os representantes dos ideais da extrema-direita tenham voz. À semelhança de 2016, os EUA confirmam o seu estatuto enquanto paraíso da extrema-direita, com uma chuva de nomeações que asseguram que os representantes dos seus ideais têm o seu lugar.
Paralelamente, receia-se uma nova onda reforçada da extrema-direita pelo mundo, como se verificou depois de Trump chegar à Casa Branca - atente-se ao exemplo europeu. Enquanto na primeira presidência de Trump, a extrema-direita é praticamente ressuscitada e começa a ganhar cada vez mais força (sendo decisiva para a viabilização de governos de direita, obtendo resultados eleitorais impressionantes ou, até, lidere governos), na segunda presidência poderemos assistir a um aprofundar desta situação e a um retrocesso civilizacional coletivo, com uma grave ameaça à democracia.
Não se trata apenas de um processo disruptivo, em que a extrema-direita surge “à mesa” ou ocupa o lugar de partido que acabam esvaziados. A segunda presidência de Trump marcará, sem sombra de dúvida, uma reconfiguração da realidade política e consequente adaptação do capitalismo. As duas presidências de Trump representam o prelúdio do fim de uma era - o período dourado da globalização e do atual modelo neoliberal aparenta estar em colapso, perante a ascensão do protecionismo económico e do isolacionismo político. Aguardar para ver o que acontece.
Em suma, nestas eleições, os americanos não podiam escolher a esquerda, porque esta não foi a votos, tratando-se de uma disputa entre diferentes tons de direita. Numa campanha em que o programa é secundarizado e a eleição resume-se a uma disputa de personalidades, a extrema-direita está no seu habitat natural e, naturalmente, Trump é a ilustração perfeita disso mesmo. Serão tempos extremamente sombrios e preocupantes, cabendo à esquerda liderar o combate a estes fenómenos e ao sistema capitalista. Caso contrário, o que será da humanidade?
Adaptação do artigo publicado no jornal Barcelos Popular a 14 de novembro de 2024