Vivemos na era do triunfo materializado do “you can do it, just do it”. A retórica do mindset positivo atravessou fronteiras, tornou-se dogma e, sobretudo, esvaziou os laços e organização do quotidiano do seu compromisso com a realidade. Este tipo projeções ideológicas – profundamente enraizadas no liberalismo e nos tentáculos sombrios da meritocracia – ignora e invisibiliza contextos, não considera desigualdades e responsabiliza apenas o indivíduo pelo seu fracasso, mesmo quando tudo à sua volta está estruturalmente programado para o completo falhanço.
Na lógica liberal, todos partimos do mesmo ponto de partida. A pobreza, o desemprego, a doença, a retaguarda familiar ou mesmo o desalojamento passam a ser sintomas de escolhas erradas, de má gestão, de ausência de esforço. É a falácia do mérito absoluto: se alguém está numa situação de sem teto é porque não se esforçou o suficiente; se perdeu o acesso ao Rendimento Social de Inserção (com o seu valor completamente desfasado do atual custo de vida), é porque "não quis trabalhar". O sofrimento é, portanto, autoinfligido – e o Estado? Supérfluo, burocrático, ineficiente. Afinal, dizem-nos: "quem quer, consegue".
Se outrora a Igreja era o catalizador do senso comum de que há quem nasça para sofrer, hoje os padres são substituídos pelos “fazedores de opinião” e influencers que propagam que a culpa é nossa e só nossa se não conseguimos ter a nossa própria casa ou alugar um quarto por menos de 500 euros em Lisboa ou no Porto. Esta situação agrava-se quando o governo tenta normalizar o valor de 2300€ como referência para renda moderada.
Este pensamento, romantizado em vídeos de autoajuda e em políticos com agendas neoliberais, desumaniza. Transforma falhas sistémicas em falhas morais. O indivíduo que não conseguiu pagar a renda porque priorizou a medicação do filho, ou porque foi surpreendido por uma despesa do carro que usa para trabalhar, não é visto como alguém que fez escolhas difíceis num sistema cruel, mas como alguém que simplesmente não soube gerir.
É neste caldo ideológico que nascem propostas como o corte de apoios sociais e o ultra policiamento para quem deles precisa. A narrativa é simples e sobretudo desumana: se não estás a produzir, não mereces viver com dignidade. O trabalho deixa de ser uma forma de participação na sociedade e passa a ser o único critério para se ter uma leve sensação de dignidade. Quem não trabalha, não é uma pessoa, mesmo que não tenha culpa de estar desempregado.
O problema desta visão não está apenas na sua crueldade – está também na sua profunda ignorância. Ignora que o acesso ao trabalho está condicionado por fatores como classe, educação, saúde física e mental, rede de apoio familiar, discriminações estruturais, entre outros. Ignora que o próprio mercado de trabalho já não garante rendimentos dignos. Ignora que há vidas que nunca começaram “do mesmo ponto” e que, por isso, não podem ser comparadas pela mesma régua.
O sistema capitalista vigente, ou até o próprio tecnofeudalismo, vende a ilusão de liberdade individual plena, mas esconde que, sem justiça social, essa liberdade é uma miragem longínqua. Quando o Estado se demite da sua função redistributiva e protetora, o que sobra é uma selva onde só os fortes sobrevivem. Os outros ficam para trás. Ou pior: são culpabilizados por terem ficado.
É urgente desmontar esta falácia meritocrática. A carência não é sinal de fracasso pessoal; é muitas vezes o resultado de um sistema que falha em garantir o mínimo: casa, saúde, educação, dignidade. Precisamos de um Estado que não seja apenas espectador do sofrimento, mas agente ativo na emancipação comunitária. Precisamos, acima de tudo, de recuperar a ideia de que a solidariedade não é caridade – mas sim um direito, que nos assiste a todos e a todas.
