Os culpados dos sem-abrigo

porEduardo Couto

11 de outubro 2025 - 20:38
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A carência não é sinal de fracasso pessoal; é muitas vezes o resultado de um sistema que falha em garantir o mínimo: casa, saúde, educação, dignidade. Precisamos de um Estado que não seja apenas espectador do sofrimento, mas agente ativo na emancipação comunitária.

Vivemos na era do triunfo materializado do “you can do it, just do it”. A retórica do mindset positivo atravessou fronteiras, tornou-se dogma e, sobretudo, esvaziou os laços e organização do quotidiano do seu compromisso com a realidade. Este tipo projeções ideológicas – profundamente enraizadas no liberalismo e nos tentáculos sombrios da meritocracia – ignora e invisibiliza contextos, não considera desigualdades e responsabiliza apenas o indivíduo pelo seu fracasso, mesmo quando tudo à sua volta está estruturalmente programado para o completo falhanço.

Na lógica liberal, todos partimos do mesmo ponto de partida. A pobreza, o desemprego, a doença, a retaguarda familiar ou mesmo o desalojamento passam a ser sintomas de escolhas erradas, de má gestão, de ausência de esforço. É a falácia do mérito absoluto: se alguém está numa situação de sem teto é porque não se esforçou o suficiente; se perdeu o acesso ao Rendimento Social de Inserção (com o seu valor completamente desfasado do atual custo de vida), é porque "não quis trabalhar". O sofrimento é, portanto, autoinfligido – e o Estado? Supérfluo, burocrático, ineficiente. Afinal, dizem-nos: "quem quer, consegue".

Se outrora a Igreja era o catalizador do senso comum de que há quem nasça para sofrer, hoje os padres são substituídos pelos “fazedores de opinião” e influencers que propagam que a culpa é nossa e só nossa se não conseguimos ter a nossa própria casa ou alugar um quarto por menos de 500 euros em Lisboa ou no Porto. Esta situação agrava-se quando o governo tenta normalizar o valor de 2300€ como referência para renda moderada.

Este pensamento, romantizado em vídeos de autoajuda e em políticos com agendas neoliberais, desumaniza. Transforma falhas sistémicas em falhas morais. O indivíduo que não conseguiu pagar a renda porque priorizou a medicação do filho, ou porque foi surpreendido por uma despesa do carro que usa para trabalhar, não é visto como alguém que fez escolhas difíceis num sistema cruel, mas como alguém que simplesmente não soube gerir.

É neste caldo ideológico que nascem propostas como o corte de apoios sociais e o ultra policiamento para quem deles precisa. A narrativa é simples e sobretudo desumana: se não estás a produzir, não mereces viver com dignidade. O trabalho deixa de ser uma forma de participação na sociedade e passa a ser o único critério para se ter uma leve sensação de dignidade. Quem não trabalha, não é uma pessoa, mesmo que não tenha culpa de estar desempregado.

O problema desta visão não está apenas na sua crueldade – está também na sua profunda ignorância. Ignora que o acesso ao trabalho está condicionado por fatores como classe, educação, saúde física e mental, rede de apoio familiar, discriminações estruturais, entre outros. Ignora que o próprio mercado de trabalho já não garante rendimentos dignos. Ignora que há vidas que nunca começaram “do mesmo ponto” e que, por isso, não podem ser comparadas pela mesma régua.

O sistema capitalista vigente, ou até o próprio tecnofeudalismo, vende a ilusão de liberdade individual plena, mas esconde que, sem justiça social, essa liberdade é uma miragem longínqua. Quando o Estado se demite da sua função redistributiva e protetora, o que sobra é uma selva onde só os fortes sobrevivem. Os outros ficam para trás. Ou pior: são culpabilizados por terem ficado.

É urgente desmontar esta falácia meritocrática. A carência não é sinal de fracasso pessoal; é muitas vezes o resultado de um sistema que falha em garantir o mínimo: casa, saúde, educação, dignidade. Precisamos de um Estado que não seja apenas espectador do sofrimento, mas agente ativo na emancipação comunitária. Precisamos, acima de tudo, de recuperar a ideia de que a solidariedade não é caridade – mas sim um direito, que nos assiste a todos e a todas. 

Eduardo Couto
Sobre o/a autor(a)

Eduardo Couto

Educador Social e ativista LGBTQIA+. Dirigente do Bloco de Esquerda
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