“Cada presente tem toda a legitimidade para reconfigurar o espaço que habita, deixando cair encenações e representações que já não lhe digam nada e criando outras”, escreve Luís Raposo, revisitando necessariamente o passado. Foi assim, aliás, que a Praça do Império e depois a inclusão dos brasões foi construída - para a construção de uma ficção sobre o império. Entretanto, o império acabou. Já não existem colónias. Fizemos uma revolução precisamente por causa disso e acabámos com essa indignidade.
Os arranjos florais de colónias e cidades que já não existem são agora motivo de um revivalismo passadista. É alarmante que a direita se agarre a isto como pretexto para se polarizar. É em torno do pior da nossa história que o querem fazer? Não arranjam nada melhor do que arranjos florais que se desvaneceram com o tempo e bem?
A direita vem a este debate em modo anti-imperialista mas brasonista, mas sem nunca aceitar que se discuta verdadeiramente o nosso passado colonial, aliás como se pode ver na petição que os mobiliza, onde os símbolos na praça do império não são mais do que um pretexto para recuperar o discurso da própria ditadura e a sua missão civilizadora nas colónias, um embuste intelectual e histórico que já foi desmistificado na maioria das ex potências coloniais, mas permanece em Portugal. E é um péssimo sinal deste consenso podre sobre a nossa história que alguém ache normal que uma democracia coloque na calçada os brasões coloniais.
Neste debate, é enaltecido pela petição “o domínio do plano, da linha reta e da ortogonalidade”, mas leram sequer as preocupações do próprio Cottinnelli devido à nova praça ficar “torcida em relação à margem norte do rio Tejo”? Não acham revelador que seja ao lado, nos jardins vasco da gama e afonso de albuquerque que as pessoas gostam de estar, evitando sempre a praça do império?
Os jardins existem pelas pessoas que os fazem viver, e não por pretensões culturais de fantasmas ideológicos.
A 1ª República tinha por projeto para a frente do Mosteiro de Santa Maria de Belém a criação de amplos espaços ajardinados, alamedas e fontes estruturadas em torno do Mosteiro que seria o centro do conjunto patrimonial e não mero cenário operático de uma manifestação imperial que a Ditadura viria a impor naquele espaço.
Esqueceram-se do património quinhentista e oitocentista que foi demolido pela ditadura, ou o mercado de Belém em estrutura de ferro semelhante ao mercado da ribeira? Não merecia referência?
Mas se consideram que o projeto de Cottinelli é merecedor de tanta glória estética e artística, e que por isso a portugalidade vive ou morre nestes arranjos florais qual aljubarrota, podiam ao menos ter-se dado ao trabalho de ler as palavras do próprio Cottineli sobre os seus dez mandamentos a propósito “do que costumam ser e o que poderiam ser os Monumentos Comemorativos” onde chamava a atenção para a excessiva “preocupação do pormenor, das coisinhas inúteis” que não só “rebaixa a arquitetura como a amesquinha”.
No momento da maior crise sanitária e social que a cidade já enfrentou a direita concentra-se em criar um caso sobre arranjos florais. É sinal de desnorte e quem vive em Lisboa percebe quem está preocupado com as suas vidas e com quem quer criar casos e casinhos porque não tem nada para dizer, nada para propor.
A petição que anda a circular, é isso que faz, cria um caso e rebaixa a arquitetura e amesquinha-a. Enaltece o pior da nossa história. O império acabou. Não espanta por isso que não entendam Portugal, nem o seu passado nem o presente.
Da nossa parte, a haver dez mandamentos para o espaço público, que sigam os mandamentos de Gonçalo Ribeiro Telles para a conceção de um jardim, e cito um deles: Um jardim e uma paisagem são fruto de conceções e projetos e nunca de arranjos ou decorações, pelo que a sua grandeza e beleza resulta no que lhes é essencial na medida certa.