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Orçamento do Estado - o valor do sector social fala por si

As IPSS da área da Saúde, que investem em equipamento, serviços especializados, inovação e todo o tipo de melhorias para criarem melhores condições aos seus utentes, são incapazes de recuperar a carga fiscal associada ao IVA, com impacto tremendo nas suas já precárias tesourarias.

A Saúde é hoje maioritariamente assente em atos de suporte, de acompanhamento e de reforço da motivação de quem vive com a doença, e não na clássica visão do diagnóstico e tratamento. Implica uma visão de um trabalho integrado e de proximidade, por parte de múltiplos profissionais de saúde, incluindo os do sector social. Só uma saúde próxima dos cidadãos conseguirá conhecer a verdadeira realidade de cada um e o seu contexto. A saúde, hoje, requer capacitar para a autonomia e autogestão da saúde e doença, proporcionando aos cidadãos uma vida ativa em sociedade.

Nos idos anos 20 do século passado, já um cartaz da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP) anunciava que as pessoas com diabetes podiam trabalhar e viver como se não tivessem a doença. Esta mensagem é agora mais verdadeira do que nunca.

Os hospitais serão, cada vez mais, centros de emergência e de tratamento de elevada complexidade técnica ou terapêutica. É necessário o desenvolvimento de estruturas intermédias especializadas, de maior proximidade. Esta atenção global e integrada é a característica dominante das atividades do sector social.

Recentemente, visitei a Associação de Pais e Amigos de Deficientes Profundos, onde 66 pessoas com idades até aos 72 anos necessitam de cuidados permanentes, desde a higiene à mobilização, à alimentação e aos cuidados médicos, às atividades de socialização e reabilitação. Estes serviços encontram-se todos integrados. É esta a revolução na saúde que é necessário fazer, para que pessoas que necessitam consigam ter uma vida autónoma e livre de sofrimento, físico e mental. É possível, em ambulatório, fazê-lo nos bairros, nas unidades de saúde e com o adequado apoio das mais variadas especialidades médicas, fisioterapeutas e outros técnicos de saúde, como os assistentes sociais e psicólogos.

As determinantes sociais da saúde, modificáveis, com mais impacto são hoje a pobreza, a baixa escolaridade, o desemprego, a solidão e as más condições habitacionais. Para uma resposta adequada e eficiente teremos de apostar no desenvolvimento do sector social, cada vez mais interessado em aprofundar a integração no Serviço Nacional de Saúde (não nos esqueçamos que as próprias misericórdias foram criadas por iniciativa governamental e que são instituições que não podem distribuir quaisquer eventuais proveitos). Para isso, necessita de deixar de ser visto como o sector dos cuidados aos pobres, da caridade e da esmola.

A APDP começou por ser a associação dos pobres com diabetes, que não tinham dinheiro para adquirir a insulina de que precisavam para sobreviver. Na APDP, as pessoas com diabetes encontraram educação, apoio, motivação, acompanhamento e prevenção das consequências da diabetes, que a levou a ser desde 1973 a Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal, e hoje ser reconhecida a nível mundial como organização ímpar, na ONU, na OMS e nos mais diversos fora.

Estas experiências do sector social, o seu dinamismo e a sua agilidade, podem ser um grande contributo para o Serviço Nacional de Saúde, mas têm sido ignoradas quer pelo Ministério da Saúde, quer pelo Ministério da Segurança Social. A falta de apoios às respostas não tipificadas tem funcionado como forma de estrangulamento destas instituições. O próximo Orçamento do Estado poderá rever esta situação, nomeadamente através da modificação de um paradoxo inacreditável.

As IPSS da área da Saúde, que funcionam em substituição e complementaridade ao SNS, que investem em equipamento, serviços especializados, inovação e todo o tipo de melhorias para criarem melhores condições aos seus utentes, são incapazes de recuperar a carga fiscal associada ao IVA, com impacto tremendo nas suas já precárias tesourarias.

Faria todo o sentido que o IVA suportado nesses investimentos pudesse ser recuperado pelas IPSS da área da Saúde, como contrapartida das funções sociais únicas que estas preenchem.

A recuperação do IVA não teria necessariamente de passar pelo reembolso ou dedução do imposto suportado, podendo ser ponderadas alternativas, tais como a isenção de IVA em determinados investimentos ou tipos de investimentos, a redução da respetiva taxa, a celebração de contratos ou outro tipo de acordo caso a caso com o Estado, mediante os quais o Ministério das Finanças reconheceria a relevância do investimento, com a consequente isenção de IVA ou redução de taxa.

O ponto de partida seria este: o Estado português renunciaria - não necessariamente na totalidade - a financiar-se com os recursos das IPSS da área da Saúde que estas desviam para o pagamento do IVA, relativo aos investimentos sociais que realizam em complementaridade (quando não, em substituição), desse mesmo Estado.

Porque será que esta realidade ainda se mantém?

Acreditamos poder modificá-la e estamos certos de que a Assembleia da República encontrará os meios para colmatar tal injustiça.

Artigo publicado em expresso.pt a 10 de outubro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Médico, presidente da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP), dirigente do Bloco de Esquerda
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