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Opus Gobernationis

Há muito da obscuridade da Opus Dei nestes tempos que enfrentamos. Não apenas muita gente dessa seita nos lugares que governam o país e o mundo, mas sobretudo uma narrativa que se incrusta nas ideias coletivas e individuais.

Tempos de austeridade são tempos de flagelação dos povos. São tempos de sacramento e odes à ideia única e totalizante de que para nos salvarmos temos de assumir a nossa culpa e confessar os nossos pecados. Tempos de austeridade são tempos de amar os credores financeiros sobre todas as coisas, pois neles reside a salvação das nossas vidas. Tempos de não invocar a santidade dos mercados em vão. Tempos de honrar a castidade e a abstinência na vida, de orientar os espíritos pela auto-contenção.

Há qualquer coisa de sacramental na ideia da austeridade. Nós, povos do Sul, pecámos. Gastámos o que não tivemos e pedimos emprestado sem ter condições para pagar. Nós cobiçamos a riqueza de outros povos e de outros países. Pecámos. Vivemos acima das nossas possibilidade. E agora, nenhuma alternativa teremos àquela que purifica as almas e os espíritos: confessar o pecado, pedir a absolvição e autoflagelarmo-nos para nos salvarmos.

É esse o sagrado. E o contrário é profano. Seremos punidos se não rejeitarmos a profanidade daqueles que não assumem o pecado e que, nas artérias subterrâneas da blasfémia e do sacrilégio, insistem em não se curvar perante os salvadores. Profanos que dizem que a austeridade é um saque aos povos. Profanos que dizem que não devemos pagar dívidas cuja responsabilidade é de outros. Profanos que nos dizem que é preciso enfrentar os nossos alegados salvadores. São esses, profanos, blasfemos, que é preciso evangelizar, domesticar e converter.

Jean Lauand da Faculdade de Educação da Universidade de S. Paulo e Dario Fortes Ferreira e Márcio Fernandes da Silva, todos ex-membros da Opus Dei, publicaram em 2005 Opus Dei – os Bastidores onde revelam as práticas mais bárbaras de autoflagelação praticadas dentro da instituição. Em entrevista os autores chegam a afirmar:

Todos usavam [cilício],não só eu. Duas horas por dia. E as disciplinas, autoflagelação, uma vez por semana enquanto dura uma oração, por exemplo, uma salve-rainha” (Jean Laudand)

“[o cilício]Parece uma coleira de cachorro com pontas de ferro que penetram na carne. Você encaixa e faz pressão na perna. É significativo, porque mostra o grau de controle mental que a instituição consegue sobre o indivíduo” (Mário Silva)
Entrevista em: cin.ufpe.br

Em 2008, a Sábado já nos tinha mostrado numa ótima peça jornalística quem dirige a Opus Dei em Portugal e mais recentemente foi notícia a nomeação de um gestor financeiro da Opus Dei para adjunto do Ministro das Finanças. É pois natural uma contaminação dos universos.

Num documento interno que saiu fora dos rigorosos códigos de segredo da organização, constavam algumas recomendações para se descobrir o que motiva um devoto a perder a fé. Os investigadores pastorais devem saber que amizades a pessoa cultiva, se tem conselhos espirituais fora, qual é a sua correspondência, que livros leem, se está a passar por problemas económicos ou se vive dificuldades no casamento.

Há pois muito da obscuridade da Opus Dei nestes tempos que enfrentamos. Não apenas muita gente dessa seita nos lugares que governam o país e o mundo, mas sobretudo uma narrativa que se incrusta nas ideias coletivas e individuais, que neutraliza alternativas e que faz com que, como no uso do cilício na Opus Dei, vamos tolerando que nos ferrem o aço na carne.

O fomento disciplina (contenção em todos os domínios da vida), a autoflagelação (temos de pagar e sofrer porque vivemos acima das nossas possibilidades), a obediência ao culto e ao chefe (não se pode afrontar os mercados e os credores), a pregação da penitência (temos de fazer cortes, se queremos continuar a viver) são assim lugares comuns que nos vão fixando os açaimes.

Mas enquanto não desprendemos as amarras, enquanto o cilício nos vai pressionando a carne, é bom lembrar que na história, como na vida, há sempre um momento em que o poder se dilui na grandeza dos povos que se levantam do chão. Nesse momento, o futuro da humanidade não será mais, como escrevia Orwell, uma bota na nossa cara para eternidade. Será, pelo contrário, aquilo que dele fizermos.

E as ruas já vão sabendo a essa explosão.

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo e investigador
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